A porteira que se cansou de estar de pé e preferiu receber na cama




Em inícios de dezembro, este mês inclinado, e que nos surge à porta embalado e acondicionado em esferovite, com instruções para cada um o montar e mais logo o descartar com o pinheiro e as luzes, quando for conveniente, antecipam-se os balanços, dispõe-se em regime de feira aquilo que se diz ser um horizonte, sempre tão mal-enjorcado, como se a vida fora um recibo mal selado. Vêm-nos com listas, destaques, numa manobra publicitária para ir a tempo das compras de Natal, e num regime de montra que mereceria antes ser designado como “saldos do ano acabado”. É um processo de obliteração das hipóteses que nos demos de suspender esta fuga esgotante, esta precipitação em direcção à coisa seguinte.
Na verdade, ninguém se guarda para esta altura na expectativa de ter sobressaltos, antes, quem vive distraído, procura iludir-se com uma possibilidade de desforra. É também mais por culpa de quem nunca admite um reverso do cenário lógico que, no caso da poesia, não se discutindo as suas investigações, esta comparece como safra da mais recente produção que saiu por aí em versos, muitas vezes distinguindo-se precisamente pelo cheiro a despegado. Nem se faz outra ideia dela, senão a de um género às voltas e voltas numa jaula de onde é cada vez mais difícil tirá-la.
Também muitos dos nossos poetas parecem apoiar-se nesse regime de espécie ameaçada, e dar o seu consentimento a todos os programas de protecção que, essencialmente, os reduzem a bichos para expor à criançada em contexto de sala de aula. Assim, nas manifestações que lhe são admitidas, a poesia vê-se autorizada a andar a par das realidades sumárias, sendo encorajado aquele grau de delirante vivacidade e humor, ou, em alternativa, aquele tom de pasmosa melancolia que serve de moral, transmitindo a ideia de que tudo são eflúvios, brados e agitação estéril, e depois cada um regressa ao seu lugar.
Seja de que modo for, há muito que nenhum balanço de ordem crítica, vivaz, vem rectificar minimamente os pressupostos, e talvez, como sugeria Cesare Garboli, por culpa dos olhos, o panorama vário daquilo que se imprime nestes últimos anos é desanimador.
Mas antes de mais, é preciso assinalar como a edição independente já não comove, nem exalta, não tem conseguido construir uma zona autónoma, uma região de práticas indóceis e desligadas das pressões do mercado para uniformizar tudo, e desde logo para restringir a sua diversidade. É como se a poesia, que ao longo de séculos se foi enchendo de varizes de tanto esperar o infinito, tivesse feito contas e preferido mandar entrar qualquer magala que lhe trouxesse um ramo das flores mais colhidas. E se a literatura deve produzir leitores, a nossa só tem produzido um vago enlevo para os gerais pastores do senso comum.
Houve épocas em que a nossa literatura teve melhores leitores do que escritores, mas ultimamente os verdadeiros leitores são tão poucos que condenam aqueles que escrevem algo de minimamente desafiante a um regime de indigência tal que logo estes vêem sufocadas todas as suas aspirações. 
Deveria ser possível fazer uma história do público literário que não fosse uma história do mercado, mas entre nós ninguém já vê como isso se possa fazer. Acontece que, se a literatura é um trabalho a partir das restrições que a cada momento nos são impostas, se nela se avança a partir daquilo que se supõe que não se pode fazer, hoje, antes de qualquer outra coisa, seria essencial separar tanto quanto possível aquelas duas realidades.
Com o seu efeito benemérito e consolador, as listas do ano publicadas pela maioria dos periódicos com pretensões culturalizantes pressupõe um resgate das espécies ameaçadas, vêm dizer-nos que, afinal, ainda se escreve e publica poesia, ensaio e obras esquivas às habituais categorias. Mas a irrelevância dos seus juízos, o grau de indiferenciação que promovem, deixam claro que não há da parte destes leitores qualquer atitude de desafio aos esforços de vulgarização, de classificação interesseira, de representação oportunista, promovendo sempre outros cálculos que não um esforço de compreender o que há de eterno na massa daquilo que se vai propondo à circulação nos nossos dias.
Assim, e tentando esgotar em si todos os venenos, estes modelos de difusão apenas servem para nos confrontar com um género no qual todos os praticantes se consideram desertores, e em lugar de um confronto, abdicam de ter um papel em qualquer discussão. Este quadro que nos parece cada vez mais mergulhado na perpétua alucinação dos egos, deixou de comunicar fosse o que fosse, de manifestar qualquer posição, contentando-se a maioria da generalidade dos escritores com um romantismo de baixa categoria, virados cada um para esse projecto patético de uma “obra”.
Emerge, assim, um espaço miserável e uniforme, ainda que as opções individuais forneçam vagos sinais de uma contínua insatisfação, de um desejo de outra coisa. Mas o mais doloroso é constatar que nem uma constelação precária parece conseguir segurar-se, e manter um efeito de irradiação mínimo, nem tem havido poetas estreantes e alguns nomes novos que possam regenerar um tecido onde se vão sucedendo perdas fenomenais, e nem nada nos compensa “da amargura que se sente no dever de confessar, uma vez mais, que o escrever em verso continua a ser sempre a grande ambição de quem escreve as coisas mais inúteis” (Garboli).
Além disso, é de salientar o quanto mesmo as últimas obras dos poetas mais antigos ou mais adiantados no ofício e nos anos exprime um sinal de desolação absoluta, uma falta muitas vezes até daquele entusiasmo desesperado. E adaptando ainda os termos daquele crítico literário italiano, é bom frisar que, para além do descrédito crónico em que vêm à luz os livros de versos, a maioria do público não lê, ou apenas o faz “se prevalece a curiosidade sobre a relutância, uma espécie de cepticismo geral, de aquiescência preguiçosa em relação ao que é publicado: e, no entanto, estamos certos de que nada mudará”.
São aqueles que assinam estas listas, e que muitas vezes não deixam de expressar em relação a elas uma boa dose de má consciência, assumindo-se como culpados, nem que seja por desejo de tranquilidade, que sempre cedem às pressões editorialistas. As mesmas que, noutros momentos, vão denunciando. Assim se roubam a si mesmos e a nós de qualquer reflexo ou eco. Estamos, por isso, diante de uma época que renuncia àquilo que pode haver de único em si, apenas porque cada um cede a essa religião do conformismo. Por essa razão, e mesmo quando esgrimem entre si as pequenas diferenças que os separam uns dos outros, apenas vemos reconhecerem que talvez sejam uns estafermos menores face aos estafermos maiores que mais têm a ganhar com este imobilismo.
O certo é que já ninguém acredita na poesia, como vincava Garboli, “na poesia como realidade social, capaz de incidir no gosto e no modo de ver e pensar colectivo”. Mas o que há de mais doloroso nesta constatação é perceber que não se trata de um parêntesis momentâneo, mas um declínio patrocinado por estes críticos mais oficiosos, que, na sua acção, sempre apontam ao pragmatismo, à oportunice e subserviência, o que acaba por desgastar e reduzir à irrelevância outras formas e outros meios de expressão.
E não se pense que os que acorrem às funções de representação oficial gozando do título de “poeta” se livram de qualquer responsabilidade nisto, pois também é certo que o estado actual da produção em versos favorece os balanços, os arranjos críticos, e induz a nostalgia do passado. “Numa atmosfera de suspensão, dedicamos alguns olhares distraídos ao presente, e resumimos, com pesar, meio século de poesia que hoje parece glorioso”, diz-nos Garboli.
Basta olhar ao nosso redor, e logo nos damos conta do quanto os poetas já parecem nascer cabotinos, e se ainda exprimem um desejo de honrar a tradição, fazem-no como funcionários da instituição que cumpre um vago desígnio de promoção dos indíces disto e daquilo. Normalmente, fazem-no a troco de uma compensação ou de um salário. E os tantos que ainda vão atazanando a musa, parecem apenas cumprir uma tarefa própria de escriturários.
Por todo o lado, só vemos sinais de uma capitulação, de tal modo que mesmo esses que, hoje, ainda insistem em escrever poesia, fazem-no sobretudo para mimar ficções alucinatórias sobre si mesmos, encostando-se às formas decadentes, precisamente porque não aguentam ver-se contrariados. E é por isto mesmo que a poesia, hoje, exprime acima de tudo esse declínio orgânico, essa substituição da ânsia de deter algum vislumbre do infinito em troca da mera falsificação da sua imagem, numa penosa emulação do narcisismo que alimenta a lógica do espectáculo, mas com esse acento de prestígio decadente de que gozam aqueles poetas hoje só revisitados por uns pretensos descendentes que traficam entre si essa forma de nostalgia apodrecida.

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