Alexandre Andrade - a violenta cor da beleza


 


Se o que existe de interessante na produção ficcional contemporânea, como agora se costuma dizer, passa mais pelos dispositivos publicitários que rodeiam o objecto livro do que por aquilo que efectivamente é escrito – as apresentações on demand, os festivais, os encontros, as regras que rodeiam os discursos dos escritores, etc. –, a obra de Alexandre Andrade, professor de física que já conta com quase uma dezena de livros, é saudavelmente anacrónica. Não subordinando a literatura nem a realismos serôdios que trazem sempre a marca de uma das palavras mais vazias do dicionário – “actualidade”; e o distante que estamos do veredicto de Rimbaud: “Il faut etrê absolutment moderne” –, nem, também, aos imperativos televisivos dos guionistas, os contos de “Todos Nós Temos Medo do Vermelho, Amarelo e Azul”, o mais recente livro de Alexandre Andrade, transportam o enigma e o segredo que, entre a pintura e a literatura, transformam a arte num território tantas vezes inóspito, anterior ao homem. O título, como se percebe logo com o primeiro dos contos, é retirado de uma série de quadros de Barnett Newman, figura ligada ao expressionismo abstracto, e dá conta do lugar central que a pintura e, em especial, a cor têm neste conjunto de contos – são, para usarmos um termo entre a literatura e a pintura, o seu motivo, uma espécie de arabesco que, inscrito nos contos, dá o fôlego de um segredo visível. De facto, se há algo que serve para os unificar, mesmo quando, pelo menos aparentemente, não é o tema central do texto, é este lugar que a cor ocupa neles, ao ponto de, tanto no primeiro como no último dos contos, se fazer referência ao vandalismo de que os referidos quadros de Newman foram alvos. E se Alexandre Andrade consegue evitar uma solução fácil quando se trata das relações entre literatura e artes visuais – a écfrase, a mera descrição dos quadros que vão surgindo nos diversos contos –, num dos seus melhores momentos é a cor que invade a escrita, ao ponto de o mundo se transformar numa vertigem em que apenas esta subsiste. Em “Jubileu”, conto que se concentra na viagem de metro que Bianca, a personagem, todos os dias faz numa das linhas de metro de Londres – com o mesmo nome do conto – , usando o percurso que vai de casa ao trabalho como exercício de memória, há um momento em que as variações cromáticas, a irradiação que esbate qualquer forma, toma a dianteira e, frase importante, “arrebatam a sua atenção” – e é de arrebatamento que trata grande parte destes contos, de uma obsessão incontrolável por um segredo que tem tanto de invisível como de visível. “As cores são uma coisa bastante curiosa. Reivindicam a nossa atenção com uma violência disfarçada de indiferença. Custa a acreditar que nada signifiquem, parecem conter uma mensagem urgente, de vida ou de morte” Esta ideia de uma violência inscrita na cor encontra-se em diversos destes contos. No primeiro, sem dúvida, que acaba com uma referência ao vandalismo sobre a obra de Barnett Newman (“André levantou o braço direito como se brandisse um objecto cortante. Seria esse o gesto se pretendesse rasgar aquelas obras de arte, uma a uma, com método e raiva”), no terceiro – “A vida por Examinar” –, onde a violência é intuída e não explícita e onde uma queda permanece por explicar – a queda de B de um escadote enquanto trabalhava numa obra que, talvez de forma não circunstancial, nunca é totalmente descrita, ocupando a vida da personagem de tal forma que outros trabalhos são colocados de parte. No entanto, e talvez de forma paradigmática, é esta violência da cor que se encontra no centro de “Os Dias Pantone”. Tom, uma das personagens, sofre de cromofobia, uma aversão a cores que varia consoante os dias e que o obriga – tendo em conta que trabalha numa editora de livros de arte – a, diariamente, consultar um catálogo, o “Catálogo Pantone”, para averiguar qual das cores poderá arrebatá-lo de tal forma que uma das consequências seria um “estado de quase catatonia”. Mas, ao mesmo tempo que se dá esta cromofobia, esta fuga relativamente à cor – como se ela fosse, neste caso em particular, uma mensagem de morte –, fala-se também numa “voraz ânsia da cor”, num momento de revelação que teve na Basílica de São Francisco perante “a imensidão azul dos céus de Giotto” – e sobre este azul, falando no entanto de um outro fresco, um historiador de arte contemporâneo dizia que ele era absoluto, “invocando um vazio que nenhum esforço humano consegue colmatar”. “Tom lembrou-se das palavras de Jacqueline Lichtenstein sobre a inefabilidade da cor, sobre a cor como componente irredutível da representação, alheia à hegemonia da linguagem, como expressividade pura; sobre o desarranjo fundamental que a linguagem sofre quando tenta descrever as emoções suscitadas pela cor.” Esta ideia de uma expressividade pura, se é certo que tem um lugar fundamental em diversos destes contos, terá de ser matizada por um elemento que surge apenas num deles, mas que pode funcionar como linha de leitura englobante. Tal como o espaço, cuja problemática já vinha de um outro livro anterior (“Quartos Alugados”) e que comparece pelo menos em dois destes contos (“MAD-SVO” e “Indigofera Tinctoria”), também uma certa ideia de “chave”, de “segredo”, se torna coextensiva a esta expressividade pura. De facto, é como se a cor funcionasse nestes contos como um desenho complexo, para convocar sem aspas uma figura maior que conhecia bastante bem esta ideia de um segredo totalmente visível, sem sombra e sem nada escondido, totalmente à vista de todos e, talvez por causa disso, estranhamente impercetível. É apenas um detalhe, de facto, mas estes contos funcionam muitas das vezes através de uma lógica dos detalhes que se tornam tantas vezes obsessivos – este carácter obsessivo é colocado em evidência no final de um dos contos: “Por mais propícia que pareça ser a ocasião para contar uma história, a vontade claudica quando o narrador se sabe dominado (ia dizer “humilhado”) pelos acontecimentos que se dispõe a narrar, em vez de ser ele a dominá-los”. No já referido conto “A Vida por Examinar” há, portanto, um pequeno detalhe relativamente a chaves, que tanto pode funcionar como metáfora como permanecer um mero elemento da narrativa, mas cuja importância talvez seja menos marginal do que se poderia pensar tendo em conta que é com uma referência a elas que o conto termina. Referindo à casa e ao estúdio de B, que comunica com a casa através de um dos seus lados, uma das personagens refere uma pequena particularidade: “Há pessoas que só têm a chave da porta que dá acesso ao estúdio a partir de casa, há pessoas que só têm a chave de casa, há pessoas que têm as duas chaves, mas ele é a única pessoa que tem a chave da porta que separa as duas metades do estúdio.” Esta ideia de que a narrativa tem diversas portas, abertas por chaves diferentes, mas que talvez ninguém, nem mesmo o artista, tem a chave que “separa as duas metades do estúdio” - no conto seguinte, há um andar em forma de L em que uma das partes permanece inacessível –, parece comandar de longe este conjunto de contos. Mas o mais interessante, de facto, nesta lógica do segredo, de lugares inacessíveis, é o desaparecimento que convoca. No último conto, cujo nome é igual ao título do livro, esta ausência de segredo é colocada em evidência: “Esta superfície vastíssima e uniforme é um chamamento. Convida-nos a abandonar esse esforço quotidiano absurdo de procurar significados, augúrios, estruturas ocultas no oceano de ruído branco que é a vida dos homens. Ao mesmo tempo, dilui os nossos escrúpulos em falar de “salvação” e mostra-nos o caminho para essa salvação: desistir de procurar tornar o mundo legível a todo o custo, aceitá-lo como aquilo que é, não resistir ao arbitrário” Como uma figura complexa que todos podem ver, este segredo que parece habitar os contos de Alexandre Andrade revela-se tão mais imperceptível quanto mais visível é.

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