Carl Seelig/ Robert Walter - Instruções para desaparecer

 




A história relativamente é conhecida: nascido na Suíça, em 1878, e morrendo já após a Segunda Guerra Mundial, Robert Walser permaneceu uma espécie de segredo da literatura de língua alemã durante muito tempo. Apesar de Kafka, Robert Musil ou Walter Benjamin se terem sobre ele pronunciado da forma mais elogiosa possível – Thomas Mann, o digno representante da Cultura alemã, por outro lado, chamou-o de “criança inteligente” –, só após a sua morte, em 1956, na mesma localidade onde nasceu, é que este nome começou a reclamar para si o lugar de destaque, dentro do modernismo europeu, que inegavelmente merece. Para este segredo ter sido mantido durante tanto tempo – e ainda hoje há, na sua escrita, qualquer coisa de indecifrável – concorreu, sem dúvida, o diagnóstico de esquizofrenia que o encerrou no hospício de Herisau e o longo silêncio (chamemos-lhe, antes, uma estranha e paradoxal liberdade, conquistada por esse “caminhante solitário (que) aspira a plenos pulmões o ar límpido do inverno”), que começa na década de 30 e vai até à data da sua morte – esta capacidade, cada vez mais rara, de colocar a literatura para trás das costas, de lhe medir os limites e se colocar nas suas margens. Se Portugal não escapou, e ainda bem, à febre Walser, que multiplicou os estudos e as edições em diversas línguas (a Relógio d’Água edita, em pouco mais de 5 anos, 6 títulos dele), chega-nos agora, numa edição da BCF Editores e tradução de Bernardo Ferro, Caminhadas com Robert Walser, de Carl Seelig. Também ele escritor – é dele umas das primeiras biografias de Einstein, para além de prosa diversa e poesia –, Seelig é conhecido, no entanto, por este livro que nos dá uma visão privilegiada e rara de uma das figuras mais extravagantes e esquivas do século XX literário. Durante vinte anos, de 1936 a 1956, Seelig desloca-se com regularidade espaçada ao hospital onde Walser se encontra internado e são os longos e acidentados passeios, as conversas sobre os mais variados assuntos, as opiniões mais ou menos extravagantes ou mais ou menos contraditórias, que encontramos neste texto que talvez seja o que de mais próximo existe de uma autobiografia – algo da ordem do impossível, no caso de Walser. E a figura que se desenha nas longas caminhadas com Seelig não anda distante das personagens que encontramos nos seus textos, essas “criaturas irremediavelmente extraviadas, mas numa região que está para além da perdição e da salvação”, como disse delas o filósofo italiano Giorgio Agamben. Irremediavelmente estrangeiro a todo e qualquer lugar – “tudo era sereno e como que perdido”, como afirma numa das suas pequenas histórias –, este ser errante que percorre por caminhos esconsos as redondezas do hospício, sempre em desvio face a todo e qualquer carreiro, é verdadeiramente marginal. Não à maneira dos pequenos marginais que pululam hoje na nossa geografia – o “meio literário”, se assim se pode chamar, tornou-se hoje um conjunto vazio ao qual ninguém pertence –, que acabam por se tornar irrelevantes na sua lógica de dissidência vazia e que, da marginalidade, retiram apenas a aura com que esta se veste, mas à maneira daqueles que, abrindo caminho pelos lugares mais obscuros – no caso de Walser, a loucura e a pobreza nada romântica em que passou grande parte da vida –, conseguiram atingir um estado de quase beatitude, além de qualquer salvação ou perdição, ao mesmo tempo longe e distante do mundo. O mesmo ser que, numa festa, terá perguntado ao escritor austríaco Hoffmannsthal se este se poderia esquecer, por um momento, que era famoso, que dizia, de Rilke, que era “leitura de cabeceira para solteironas”, ou, de Peter Altenberg, que este era “uma adorável salsicha vienense” – mais haveria a dizer desta recusa de toda e qualquer literatura que se quer altiva, séria, que se julga destinada “a educar o mundo inteiro” – é também aquele que parece ignorar todos os acontecimentos e ter cortado toda e qualquer laço com o que o rodeio – e que não seja da ordem do detalhe, do pormenor, do desvio ou do arabesco, do pequeno desenho inessencial. “Um combate aéreo desenrola-se nas alturas. Os camponeses interrompem o seu trabalho e olham para cima. Robert, pelo contrário, volta-se com mais interesse para os abetos e as flores, para as casinhas arranjadas de Appenzell e para as encostas escarpadas. Todo o passeio é, para ele, um verdadeiro deleite” É certo que isto, escrito no apogeu da barbaridade que se tinha instalado na Europa, se deve, em parte, ao facto de Walser se ter transformado num sobrevivente de uma época e de um mundo que tinham colapsado – diz de si próprio que é quase um fóssil a partir do momento em que “os jornais para os quais escrevia desapareceram” e “os seus editores foram perseguidos ou morrem”. Mas é também verdade que há aqui um gesto consequente, uma forma, que não é estranha à literatura, de compreensão do mundo. Pouco antes de se referir a Hölderlin – que, tal como Walser, Kleist ou mesmo Nietzsche, fazem parte de uma tradição pouco conforme às boas intenções dos literatos e à literatura como género edificante –, é para uma espécie de isomorfismo entre a sua escrita e as tortuosas caminhadas que aponta: “Estou-me nas tintas para as vistas magníficas e para os grandes cenários. Quando aquilo que está distante desaparece, o que está mais perto aproxima-se delicadamente. De que precisamos mais, para ficarmos satisfeitos, além de um prado, de um bosque e de algumas casas tranquilas?” Há uma pergunta insistente, avessa a qualquer resposta, que um amigo está constantemente a colocar – presumo que, para ele, se trate daquele género de perguntas que não largam, que é necessário estar sempre a medir e a interrogar os limites. Penso que ela surge, em primeiro lugar, no filósofo Giorgio Agamben, ou pelo menos é algo que gravita em torno do pensamento deste. Em todo o caso, ela parte de uma constatação e de uma impossibilidade em compreender um fenómeno localizado: porque é que grande parte das obras maiores do início do século XX, na literatura mas não só, permaneceram incompletas? Não, claro, que a obra de Walser surja marcada por uma incompletude semelhante à de um famoso livro de filosofia dos anos 20 do século passado, pelo menos num certo sentido – ou que se consiga lidar com essa pergunta num artigo de jornal. Mas há em Walser, nas suas histórias e na sua escrita, qualquer coisa que é do âmbito da anotação, do apontamento e do arabesco (um crítico de Os Irmãos Tanner “escreveu que o romance consistia apenas numa série de anotações”), da incompletude radical, como um caminho que multiplica constantemente os desvios que faz e que tem prazer nas ínfimas deslocações que produz – e que pouco se importa com as assim chamadas grandes questões, com as “vistas magníficas” e os “grandes cenários” de que fala, tão caras aos “escriturários impotentes” que, como dizia Camilo, hoje capturado por tendências pouco recomendáveis, “penduram a carne com vareja na escápula”. Mas estes seres extraviados, da mesma forma que o seu autor, nada têm que aponte para uma qualquer falha, tal como os textos de Walser, ao multiplicar os desvios e as errâncias, são apenas índices de uma vida transbordante, cheias de diferenças ínfimas que não precisam, sequer, de parecer verosímeis para surgirem carregados de uma energia concentrada ao alcance de poucos. Serão, no máximo, erros, naquele sentido que, algures, Blanchot falava: não como uma deficiência que impede o que quer que seja, mas como uma expressão de algo demasiado irrequieto e transbordante para ser contido em qualquer estrutura, esquema ou mesmo género – e se são incompletos é porque essa vida, quando se afirma, não tolera qualquer forma de fechamento. Tal como as caminhadas que Seelig descreve, em que o percurso sinuoso, a dificuldade e o atrito, são o elemento essencial que chega a apagar a própria finalidade (o importante, a dada altura, parece ser o desvio de todo e qualquer caminho, e não chegar onde quer que seja ou, simplesmente, caminhar sem destino), assim os textos estão demasiado ocupados na aproximação delicada do que “está mais perto” para perder tempo com aquele “aprumo burguês” de que fala relativamente a Thomas Mann: “alguém que sempre esteve sentado à secretária, de volta da papelada do escritório”, preocupado “em colocar cada detalhe no sítio certo”. Não que não seja respeitável quando este trabalho de precisão se torna maníaco – mas quem, hoje, é maníaco a este ponto? No entanto, infelizmente, a nossa geografia dá-nos apenas aqueles textos bem compostos, esforçados decerto, carregados de boas intenções, prontos a salvar o mundo – caso este assim o queira. Seria bom que passassem primeiro por esse “ar límpido de inverno”, esse que “é tão denso que se pode quase comê-lo” e se conseguissem aproximar desse silêncio, tantas vezes mortal, que consiste, como afirma relativamente a Hölderlin, em “poder ficar a sonhar num canto discreto, sem exigências constantes”.

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