Michel Foucault - Sexo e verdade II

 




Num momento como o actual, em que a discussão em torno da sexualidade é reduzida a biologismos tomados como verdades evidentes ou a problemáticas legais relativamente a direitos – tantas vezes o sintoma de que a possibilidade subversiva já há muito se retirou –, a edição do 4º e último volume da História da Sexualidade de Foucault serve, antes de mais, como modo de deslocação do problema e como forma de criação de atrito face à tagarelice que invadiu, nos últimos anos, o espaço público. Serve também para, seguindo a finalidade última do projecto de Foucault, tornar estranha esta palavra, “sexualidade”, que é hoje tomada de assalto por discursos cada vez mais redutores, contornar toda a evidência com que ela possa surgir e, por fim, tomar como objecto histórico aquilo que, aparentemente, é desprovido de história – e tomar como objecto histórico, não no sentido de “representações sobre a sexualidade”, mas no sentido de a situar no cruzamento de vários saberes e práticas, de múltiplas problemáticas (teológicas, no caso de As Confissões da Carne) em que foi tomada como objecto ou em que esteve em causa. E é este projecto geral, que ocupou Foucault nos últimos anos de vida, que agora pode ser encarado na sua globalidade, apesar de permanecer incompleto. De facto, quando morre, em 1984, Michel Foucault encontrava-se longe de dar por terminado o projecto, começado em 1976 com a publicação de A Vontade de Saber, de constituição de uma história da sexualidade – a edição alemã do primeiro volume trará um título bastante elucidativo do que se encontra em causa: “sexo e verdade”. Se, por um lado, isto se deve, sem dúvida, à sua morte precoce, por outro, é ainda consequência da súbita mudança que, pouco depois do primeiro volume, fez com que a investigação mudasse completamente de rumo – ao ponto de Gilles Deleuze, num livro com grande impacto na leitura contemporânea de Foucault, falar num impasse, num forte abalo sísmico que derivaria da forma como pensa o poder e como, mais importante ainda, não consegue pensar um ponto de vista que consiga escapar às malhas de um poder que se estende por todo o corpo social. Num século marcado pelo lugar central que o termo “sexualidade” foi alcançando, o nome de Michel Foucault figura como um dos seus momentos maiores – teríamos que acrescentar Freud, sem dúvida, com o qual mantém uma relação ambígua, mas também Marcuse, cuja obra era, ao tempo em que escreve, bastante lida dentro daquilo que ficou conhecido por “freudo-marxismo”. Filósofo com uma obra imponente e tantas vezes paradoxal – os filósofos não lhe perdoam a história, de que desconfiam, os historiadores não lhe perdoam o lado teórico que pressentem –, activista que ficou ligado ao universo das prisões devido ao trabalho desenvolvido no GIP (group d’information sur les prisions) e ao estudo Surveiller et Punir, mas, igualmente, ao universo homossexual (é considerado como uma das maiores influências da assim chamada “queer theory”), poucas são as áreas dentro das chamadas “ciências humanas” onde não se faça sentir a sua influência. Foi preciso esperar 34 anos, no entanto, para que As Confissões da Carne fossem finalmente publicadas. As razões são, certamente, conhecidas – passam pela proibição de publicações póstumas que Foucault impôs, mesmo que estivesse a trabalhar no manuscrito na altura em que morre. No entanto, é o próprio lugar que este As Confissões da Carne ocupa dentro do projecto geral de uma história da sexualidade que parece permanecer ambíguo. Porque, por um lado, ele é escrito após o primeiro volume e dele conserva uma ou outra linha de força, um ou outro elemento que estabelecem uma certa continuidade – o seu momento mais político, por assim dizer, seguindo o fio interrogativo aberto no primeiro volume, é sem dúvida o 2º anexo. Mas, ao mesmo tempo, é todo um novo estilo e uma nova problemática que, sendo certo que já conhecíamos dos outros dois volumes, vemos actuar neste As Confissão da Carne. Mudança de estilo – que é sempre índice de uma modificação do pensamento: às formulações vertiginosas que fizeram durante tanto tempo parte do estilo de Foucault (é conhecida a polémica que se sucedeu à famosa morte do Homem vaticinada nas últimas páginas de As Palavras e as Coisas) sucede a paixão meticulosa do arquivista. De facto, nestas 400 páginas que tratam da evolução do cristianismo nos primeiros 5 séculos da nossa era, encontramos uma imensa máquina de leitura atenta aos mais pequenos pormenores, aos mais ínfimos desvios e deslocamentos. Trata-se verdadeiramente de uma genealogia, de um método genealógico tal como Foucault o pensa num dos poucos textos em que se debruça sobre a sua prática – Nietzsche, a Genealogia e a História. “Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não será, portanto, partir em busca da sua «origem», negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história; será, pelo contrário, demorar-se nas meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro; não ter pudor em ir procurá-las lá onde elas estão, escavando os basfond;” Talvez o que de mais interessante haja neste último volume da História da Sexualidade de Michel seja, de facto, assistirmos ao lento surgimento do conceito, central ainda para nós, de sujeito do desejo. É certo que, surgindo apenas na última parte, num diálogo, que se nota ter sido intenso, com Santo Agostinho, isso não retira aos outros dois grupos em que se divide o livro o interesse – em todo o rigor, a “libidinização do sexo” surge apenas no último capítulo do terceiro último grupo. Nestes dois, centrados no baptismo, na problemática da penitência e na virgindade, vemos como certos conceitos e práticas começam por surgir inseridos em pequenos grupos mais ou menos marginais e em textos mais ou menos secundários de autores pagãos para ganharem uma amplitude e uma dimensão que não tinham. O problema da virgindade, por exemplo. Longe de ser uma originalidade cristão, correspondia a uma espécie de regra de vida defendida pelos “verdadeiros filósofos” – para citar Galeno, conhecido médico romano. Mas a essa continuidade, que vem contrariar uma ideia muito difundida de uma maior abertura da antiguidade clássica relativamente à sexualidade face ao rigorismo do cristianismo primitivo – Foucault afirma que os grandes interditos do segundo “são os mesmos que eram proibidos pela moral pagã” (167) –, é preciso opor, desde logo, todo um conjunto de deslocamentos que o cristianismo vai operar, dobrando a abstinência sexual e o princípio da continência aos seus interesses particulares. No entanto, é com o Agostinho e a libidinização do sexo que encontramos a formulação de um sujeito de desejo e a colocação do sexo num lugar de tal forma proeminente que vai suscitar todo um conjunto de práticas de construção da verdade que actuaram durante muito tempo – e talvez ainda hoje actuem, mesmo que de forma mais ou menos inconsciente. Por exemplo, o sexo será, depois de Agostinho, central para a economia do pecado original. “Agostinho acaba por colocar o acto sexual no centro da economia do pecado original e das suas consequências, mas a título de veículo permanente da sua actualidade através das gerações humanas. Está, relativamente a essa falta inicial e determinante, numa posição de consequência que não se apaga e de causa sempre renovada” (368) Esta culpabilização sem fim do sexo, que nem o baptismo ou mesmo a continência conseguem apagar – sobre o baptismo dirá que “apaga o que nesta (na concupiscência) constitui a culpabilidade actual, mas mantém a vigência daquilo que forma a estrutura permanente do sujeito” (370) – não vai, no entanto, sem um correspondente ponto de vista bastante determinado relativamente à vontade e ao lugar que o involuntário preenche (que, de forma bastante interessante e talvez sintomático, é sempre pensado a partir do homem e da erecção). “Ora, a análise de Agostinho não faz da concupiscência nem uma potência específica na alma, nem uma passividade que limite o seu poder, mas a própria forma da vontade, quer dizer, daquilo que faz da alma um sujeito. Não é para ele o involuntário contra a vontade, mas o involuntário da própria vontade: aquilo sem o que a vontade não pode querer, excepto precisamente o socorro da graça, que só ela pode libertá-la dessa «enfermidade» que é a própria forma do seu querer” (366) É a partir deste momento que a vontade se vai tomar a si mesma como objecto e permitir, por fim, uma codificação dos actos sexuais a partir de uma estrutura que torna equivalente o sujeito de direito ao sujeito de desejo – ambos subsumidos a uma “política dos fins”. Já não, portanto, uma “moral da natureza”, em que o sexo seria dividido entre o natural e tudo quanto o viole, ou uma “ética da pureza”, com o “seu ideal de continência completa”, mas a codificação meticulosa e sem fim dos actos sexuais “em função desses usos, dos fins que se dão, das circunstâncias que os modificam”. Este momento, que demonstra a forma como a vontade, lentamente, se vai dobrando sobre si mesma, lançando luz sobre todas as suas dimensões mais obscuras e permitindo que o desejo tenha por fim um sujeito que possa ser culpabilizado pela sua vontade – ao contrário de uma mera culpabilização dos actos – é um dos traços mais duradouros de Agostinho e tem como consequência essa ligação estreita da sexualidade à verdade – à nossa verdade e à verdade da própria sexualidade. E se não é possível estabelecer sobre este livro de Foucault uma relação imediata com o nosso presente – neste sentido, ele é profundamente avesso a qualquer forma de subjugação à actualidade e às suas modalidades discursivas –, isto talvez se deva ao deslocamento da questão que, ainda hoje, ele continua a efectuar, deixando em aberto a possibilidade de pensarmos o que seria enfim uma sexualidade para além da verdade.

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