Michel Foucault - Sexo e verdade (revista Electra 9)


 

 

 

 

Em fevereiro de 2018 – a edição portuguesa surgirá um ano mais tarde –, sai finalmente na Gallimard o último volume do projecto que Michel Foucault inicia em 1976 com a publicação de História da Sexualidade I – A Vontade de Saber. 34 anos depois do terceiro volume, com um texto estabelecido por Fréderic Gros a partir do manuscrito e da transcrição dactilografada em que Foucault trabalhava quando morre, sem aparato crítico à excepção de quatro anexos – um deles bastante relevante, ao conferir uma tonalidade mais vincadamente política à investigação de Foucault –, História da Sexualidade IV – As Confissões da Carne tem, como afirma Gros, uma génese complexa, fazendo com que o lugar que ocupa dentro do projecto geral de Foucault – ele mesmo inserido dentro de um outro projecto, mais vasto, de uma história da verdade – permaneça instável. Se não se deve ser demasiado apressado em estabelecer paralelos históricos, em retirar consequências de épocas e discussões cuja distância temporal é dificilmente quebrada; se os possíveis deslocamentos operados nas discussões contemporâneas sobre a sexualidade, reduzido tantas vezes a formas de identificação e a biologismos sem consciência histórica, terão sempre de ter em conta esta resistência que a investigação de Foucault oferece; se, portanto, só a partir de uma panorâmica geral sobre a investigação de Foucault relativamente à sexualidade é que talvez se possa estabelecer uma relação oblíqua com grande parte da discussão actual sobre a sexualidade, isto não significa que, com a saída do último volume da História da Sexualidade, não tenhamos perante nós um poderoso instrumento para interrogar a ligação do sexo à verdade, por um lado, e, por outro, a ideia de um sujeito do desejo. Entregue para publicação em 1982, antes de os outros dois volumes ainda publicados em vida de Foucault terem sido escritos, este último volume, que, no entanto, não fecha a pesquisa de Foucault relativamente à sexualidade – faltaria talvez um outro, que viesse conferir unidade aos dois campos de pesquisa, concluir o percurso iniciado com Vontade de Saber –, teve de aguardar quase 40 anos para ver a luz do dia. A explicação para este longo período de espera é conhecida: se, por um lado, a pesquisa de Foucault sofre um desvio que o obriga a interrogar as “artes de existência” da Antiguidade Clássica, empurrando, de certa forma, a pesquisa sobre o cristianismo primitivo para um momento posterior, por outro lado, Foucault expressa a diversos amigos a vontade de não ver publicados inéditos, fazendo com que As Confissões da Carne, no qual trabalhava quando morre em Junho de 84 – dividido em 3 grandes partes, só as duas primeiras foram de certa forma revistas por Foucault – permanecesse numa espécie de limbo do qual só agora saiu. Nem um livro completamente acabado, faltando, por exemplo, uma introdução que enquadrasse a pesquisa em conjugação com os outros volumes, nem um mero agregado de notas dispersas sem unidade, As Confissões da Carne permanece assente na falha geológica que separa A Vontade de Saber dos dois volumes seguintes. De facto, após a saída do primeiro volume de História da Sexualidade, onde o que se encontrava em causa era a análise do “dispositivo” que multiplica os discursos sobre o sexo – contrariamente à hipótese repressiva, o poder, segundo Foucault, instaura toda uma tecnologia, todo um conjunto de técnicas que estabelecem um vínculo entre verdade e sexo, onde este último é objecto de interrogação, de uma decifração incessante, de uma “discursificação” – a pesquisa de Foucault começa lentamente a seguir por um outro caminho. Às grandes rupturas, aos quadros históricos dissimétricos – bastando para tal pensar no início de Vigiar e Punir, na forma como Foucault faz jogar o suplício contra os novos modos de encarceramento –, sucedem-se as pequenas diferenças, as clivagens quase imperceptíveis meticulosamente estabelecidas, a paciente minúcia do saber, aquilo que, num artigo sobre Nietzsche e a história, chamará de “genealogia” – que engloba, sem dúvida, grande parte do trabalho teórico de Foucault mas que talvez encontre nos últimos livros e cursos os seus exemplos maiores. Mas também se altera o quadro histórico: em vez dos diversos discursos e que se estabelecem à volta da sexualidade nos séculos XVIII e XIX, uma longa temporalidade que engloba a antiguidade clássica – no segundo e terceiro volume – e os primeiro séculos da nossa era, até Santo Agostinho (354-430 d.c.), neste último volume – onde esta paciente minúcia se dá a ver na forma como determinados conceitos vão preenchendo diversas funções na economia textual de textos diferentes, na análise rigorosa que permite estabelecer pequenas diferenças de tonalidade entre conceitos que transitam entre diversos autores. Se, no primeiro dos volumes, se tratava de contornar a evidência da sexualidade enquanto invariante, de recusar a sua redução a qualquer forma biológica, de mostrar que existe uma história lá onde ela parece não existir, de mostrar que esta história não se reduz ao domínio das representações mas que se joga na filigrana dos corpos e das almas, se, portanto, se tratava de interrogar a “sexualidade como experiência”, isto é, “a correlação, numa dada cultura, entre domínios de saber, tipos de normatividade e formas de subjectividade”, com os últimos volumes a problematização é já outra. Neste último, que toma como objecto as discussões, as lentas evoluções e os pequenos deslocamentos em torno da penitência, da virgindade e do casamento, encontramos uma espécie de dupla linha de investigação. Em primeiro lugar, aquela em que se confronta a exomologese enquanto modo de “fazer-a-verdade” – a vida do penitente que “não procura estabelecer a identidade do sujeito nem fixar a sua responsabilidade”, que se aproxima do martírio enquanto “conduta de verdade” e onde é a própria vida do penitente que surge como um modo da confissão – com a exagoreusis enquanto modo de veridicção, de injunção a dizer a verdade. Mas enquanto no primeiro caso o que estava em causa é uma espécie de prova a que a vida era submetida em todos os seus momentos, de ruptura no tempo, de uma morte em vida, no segundo caso trata-se de um labor infinito de desvelamento da verdade, de uma confissão sem fim de todos os segredos ao director de consciência, de uma relação intensa, tão ou mais intensa que a do penitente na medida em que produz a necessidade de um exame perpétuo, de uma atenção meticulosa a todos os pensamentos, entre sexo e verdade. “A exagoreusis que se desenvolveu no monaquismo como prática de um exame ininterrupto de si ligado a uma confissão incessante ao outro está portanto muito longe, apesar de certos traços comuns, da consulta que encontrávamos na prática antiga, e da confiança que o discípulo do filósofo devia ter no mestre de verdade e de sabedoria. Antes de mais, o exame-confissão está ligado na sua permanência ao dever, também ele permanente, de obedecer.” (160) Lento deslocamento, portanto, de problemas e conceitos, que passam de movimentos marginais como as escolas filosóficas da antiguidade para o cristianismo primitivo, adquirindo novas dimensões e um esboço de universalidade que não tinham. A virgindade, por exemplo, começa por ser uma prescrição das escolas filosóficas pagãs, mas, com o cristianismo e com o movimento monacal, adquire toda uma nova dimensão positiva: já não se trata, de facto, de uma mera abstenção das relações sexuais, da continência defendida pelos filósofos pagãos – puramente negativa, já que em si a virgindade era uma mera abstinência –, mas de uma complexa “tecnologia da virgindade” (178) em que estava em causa “não uma rejeição do corpo, mas um trabalho sobre a própria alma” (178), um “tipo de relação de si consigo, que se reporta não só ao corpo, como às relações do corpo e da alma, à abertura dos sentidos, ao movimento dos prazeres através do corpo” (233). Mas algo de semelhante acontece com o casamento. A quem considere que se trata de um invariante, que sempre figurou como um dos locais privilegiados ao qual a sexualidade é reduzida, convém começar por realçar que, bem pelo contrário, durante os primeiros séculos o lugar por ele ocupado permanece bastante marginal. Desprezado – ou, pelo menos, ignorado – face à virgindade, só mais tarde se tornará objecto de preocupação e de atenção. “Não se encontram no cristianismo antigo tratados do casamento como se encontram tratados da virgindade; a vida matrimonial não é, enquanto tal, objecto de uma elaboração que faria dela uma prática específica e uma «profissão» dotada de um sentido espiritual particular” A esta ignorância, a este “esquecimento”, que tinha como provável consequência uma maior amplitude da liberdade, sucedeu, algures no século IV, uma preocupação, um cuidado para com o casamento, tomando como objecto “a vida dos indivíduos no que pode ter de privado, de quotidiano e singular” (270). Devido à ameaça que o movimento monacal representava de “deslocar o centro de gravidade do cristianismo para fora das comunidades urbanas”, sentiu-se a necessidade de estabelecer todo um conjunto de regras, de prescrições, toda uma tecnologia complexa sobre o próprio lugar do casamento dentro da economia geral da salvação, para que este adquirisse um valor espiritual positivo. É a própria vida quotidiana dos indivíduos, o que nesta existe de singular e privado, que parece, pelo menos superficialmente, avesso a qualquer forma de luz pública, que se vai transformar, doravante, em objecto de regras e prescrições, que vai reunir todo um conjunto de preocupações, que vai arregimentar discursos, conceitos e problemas quanto ao seu lugar, enfim, que vai ser objecto de uma atenção paciente, incessante e meticulosa. Se esta “veridicção”, se esta injunção à verdade sobre o sexo que pressupõe uma relação de si para si, se esta obstinação num exame perpétuo a todos os desejos, a todas as declinações da vontade, se aproxima tanto da investigação do primeiro volume quando daquela inaugurada pelo segundo e terceiro volumes da História da Sexualidade, talvez seja, no entanto, no preciso momento em que o sexo passa a ocupar um lugar privilegiado dentro da economia do mundo que mais se faz sentir a genealogia do sujeito de desejo. E, de facto, é com Agostinho que “entramos numa moral sexual centrada no sujeito jurídico”, através de uma deslocação geológica cujos efeitos, ainda hoje, se fazem sentir. “Se o acto sexual fosse em si mesmo e naturalmente um bem, a codificação destas relações poderia [fazer-se] simplesmente em função da forma que se considera “natural”: sendo o restante excesso, abuso, transgressão dos limites, passagem para o lado do contra-natura. Permaneceríamos assim numa moral da natureza. Se a relação sexual se definisse somente pelo mal ou pela contaminação que traz consigo, a codificação far-se-ia em função de um ideal de continência completa (...): estaríamos numa ética da pureza. (...) Mas a dissociação, no acto sexual, entre o mal da libido e a possibilidade de nos servirmos dela bem ou mal permite codificar os comportamentos sexuais em função desses usos” A primeira deslocação, desta forma, consiste numa juridificação dos comportamentos sexuais, longe de qualquer ideia de contra-natura. No entanto, esta deslocação é antecedida de duas outras, que acabam por condicioná-la e conferir-lhe uma consistência e um âmbito mais vasto. Por um lado, o involuntário da vontade (o sexo erecto que não obedece) é a marca de uma cisão dentro do próprio sujeito, uma cisão “entre os desejos da carne e os do espírito”, mas, mais importante ainda, a concupiscência vai surgir a Agostinho como a própria forma da vontade, transformando todo o homem num “sujeito de uma vontade concupiscente” (369), criando para o desejo um sujeito que o condiciona, ao qual pode ser referido e, principalmente, que pode ser culpado do mesmo. A segunda deslocação, no entanto, vai transformar o sexo num momento hiperbólico dentro da economia do mundo. De facto, à questão de saber qual a relação do sexo com a dupla paraíso/queda, Agostinho responde que ele é o “suporte da actualidade em cada homem do pecado original” (368). Criação, portanto, de um sujeito para o desejo, que será o nó onde sexo, verdade e desvelamento se cruzam, mas, ao mesmo tempo, transformação do sexo em nada menos do que a ligação do homem ao pecado original, como a perpétua actualização naquele deste último.

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