O último escritor. Fábula





Aquilo que outrora transportava o nome de romance, e que nos acompanhou desde o inaugurar da modernidade até bem recentemente, é hoje objecto de uma nova economia – acima de tudo simbólica, mas não só – para a qual, muito possivelmente, faltam ainda os conceitos que nos permitam pensar e que lhe retirem, por fim, os traços de familiaridade com que se apresenta. Esta nova economia do texto, mas não só, resulta, acima de tudo, do recuo e do progressivo desaparecimento de figuras que nos eram próximas, de estruturas históricas que nos permitiam pensar e cartografar um campo, o literário, que vem sofrendo aos poucos mutações onde é a própria literatura, ou a pobreza e o vazio que nesta palavra eram transportadas, que tende a um apagamento. A universidade, por exemplo, outrora um bastião que guardava ciosamente a tradição literária, é hoje uma pálida imagem daquele ar poeirento dos Lentes imersos nos seus manuscritos, com o paciente labor que os caracterizava – e não há autor que, actualmente, não seja objecto de uma qualquer tese de doutoramento, de mestrado ou de um artigo científico; a crítica, cuja morte começa a ser anunciada na década de 70 do século XX, ou se transformou em resumos mais ou menos conseguidos ou não consegue enfrentar esses novos objectos que apareceram nos últimos decénios – continuando a ser escrita como se nada de novo houvesse, à semelhança dos desenhos animados que correm para lá da ribanceira, não notando na ausência de chão. Os próprios editores que, num misto de arrojo e erro, numa obstinação tantas vezes incompreensível e inconfessável, se transformavam tantas vezes em sismógrafos da literatura, começam a desaparecer, trocados por outras figuras mais normalizadas, sem o excesso que aqueles tinham. Se o desaparecimento destas três figuras – aos quais se poderiam acrescentar outras – que desenharam o mundo conhecido da literatura se deve, sem dúvida, a motivos diferentes – a da crítica, a mutações repentinas e recentes dentro da imprensa; a da universidade, ao lugar central que deixou de deter quanto à produção de conhecimento crítico; a dos editores, com certas transformações económicas do campo literário –, este mesmo desaparecimento, este recuo que ainda hoje acontece, acabou por ter duas consequências: a manutenção de certas fórmulas ritualizadas esvaziadas de função histórica precisa, como algo que permanece apesar da sua possibilidade se ter esgotado – os prémios, por exemplo, hoje olhados com desconfiança um pouco por toda a parte – e, talvez mais interessante do que este vazio, o surgimento de uma nova figura, ao mesmo tempo central e desnecessária: o último escritor, aquele que, paradoxalmente, já não precisa de escrever. Talvez seja devido a esta figura, que se tem vindo a desenhar aos poucos, que a fórmula inglesa bastante citada “publish or perish” precisa de ser reformulada ou, pelo menos, encarada a partir de outro ponto de vista. Porque já não se trata da necessidade de publicar incessantemente de forma a não desaparecer do horizonte, apesar de esta necessidade ser sentida em diversas geografias, já não se trata de marcar presença de forma a conquistar um certo território, dentro do mundo editorial ou crítico, mas, mais importante do que isso, de manter uma relação económica com o tempo. Publicar ou não é, doravante, pouco importante, desde que a presença dentro do campo literário – assuma a modalidade que for – crie uma expectativa, uma necessidade cuja realização é, na realidade, indiferente, porque basta ser apresentada enquanto tal. O escritor que já não escreve, que se retirou da escrita, cuja história foi de certa forma traçada por Vila-Matas, cujo fantasma assombrou grande parte da produção literária moderna e que apontava para uma relação tempestuosa com a escrita – e quem terá hoje uma relação assim, a quem poderemos reconhecer essa relação macerada com o mistério da palavra sem segredo? –, cedeu o seu lugar ao escritor que está constantemente a escrever, mesmo que isso não corresponda a nada de concreto – e não precisa de corresponder: a escrita tornou-se, doravante, supérflua. O silêncio intempestivo e eloquente daquela figura negativa, por sua vez, que correspondia a uma linha de fuga da obra e que, de certa forma, era ainda parte desta, desapareceu para dar lugar a uma tagarelice constante que se substitui a qualquer obra e que, na realidade, a torna redundante: já não é preciso escrever, basta saber gerir o tempo, prometer, para breve, uma outra obra, falar de novos “projectos” que estão aí, quase a chegar, na iminência de um futuro que se esgota na formulação da sua possibilidade – a promessa do livro por vir é já a sua realização e preenche uma função precisa dentro do campo literário. O último escritor: figura ao mesmo tempo familiar e distante. É certo que evoca um dos grandes nomes da literatura do século XX, Maurice Blanchot, e a forma como este, talvez como nenhum outro nome em todo o século, levou até ao fim a experiência da literatura – e, pormenor importante, não a do romance –, deu ouvir como poucos essa exigência radical da palavra que este nome, cuja coisa surge no dealbar da nossa época e que hoje parece em vias de desaparecer, transportava. Mas não estaremos já de tal forma distantes deste pensador que, actualmente, no momento em que escrevo, na nossa geografia, no nosso tempo, ele só nos pode surgir como profundamente inactual e intempestivo, ainda mais intempestivo e inactual que no tempo e no espaço em que escreveu? O último escritor. Para Blanchot, este correspondia a um Rimbaud com quem desapareceria o “pequeno mistério da escrita” e assinala, não o silêncio, mas o recuo deste, o desaparecimento, talvez, desta “palavra secreta sem segredo”. “Tais épocas existiram e existirão, tais ficções são realizadas em certas alturas da vida de todos nós. Para surpresa do senso comum, no dia em que essa luz se apagar, não será pelo silêncio, mas pelo recuo do silêncio, por um rasgão na espessura silenciosa e, através desse rasgão, pela aproximação de um novo ruído que se anunciará a era sem palavra. Nada de grave, nada de ruidoso; apenas um murmúrio, que nada acrescentará ao grande tumulto das cidades de que julgamos sofrer” (Blanchot, 2018, p. 244) Mas tal como o silêncio de Rimbaud é ainda parte da obra, iluminando-a nem que seja por um breve momento – conferindo-lhe um sentido, mas não um destino –, também o anúncio da era sem palavra é ainda deixar ouvir um certo rumor, esta linguagem muda, breve murmúrio tantas vezes imperceptível – e indiferente, de uma indiferença tão profunda que nos desconhece. E talvez se possa pensar, na realidade, que é na meia-noite do mundo, quando dos deuses já não há notícia, quando já nem se faz sentir a falta do deus, que esta linguagem muda chama a si toda a sua possibilidade, como uma exigência louca, exorbitante, aí onde o silêncio recuou sem deixar notícia. E quem nunca sentiu, de facto, em certas horas, esse desejo de evasão, de partir, essa vontade que se instala de deixar tudo, de queimar todos os papéis, de deixar de falar, de recuar ao mutismo e de permanecer nele, esquecido e esquecendo a linguagem – e quantos não o fizeram ou tentaram, ora porque reconheceram na sua obra esse desespero de onde não se escapa, como Kafka, ora porque não souberam estar à altura desta voz inquieta que não os deixava? Mas este já não é, talvez, o nosso horizonte; já não o desejo louco da palavra, o tumulto da linguagem, cujo desenho negativo é essa evasão infinita, mas a familiaridade que se instala na figura do último escritor, demasiado confortável numa escrita para a qual basta, na realidade, a sua promessa. É desta forma que o nosso último escritor é uma espécie de negativo, de figura reactiva que começa a ser desenhada, em diversos quadrantes artísticos, na década de 80 do século XX – Lyotard diagnosticava essa doença, essa injunção a ser comunicável, no começo de L'Inhumain; e que podemos traçar, quase ponto por ponto, a contraposição entre ambas as figuras: de um lado, a maldade secreta, os fins inconfessáveis, que faz com que o poeta se torne “o amargo inimigo da figura do poeta”, que responda apenas a uma busca obscura; do outro, a bondade pública, a afirmação continuada da necessidade da literatura (mas quanta maldade há nesta bondade, quanto de inconfessável e vergonhoso ela não trai); de um lado, uma interrogação que faz com que cada livro “decida absolutamente dela” (da literatura), “longe dos géneros, fora das rúbricas”; do outro, a certeza de uma função – social, histórica, académica – que é necessário sublinhar e preencher; de um lado, uma certa pobreza e um certo vazio, uma fúria, uma solidão maldosa; do outro, um monstro bem educado e domesticado. “É frequente dizer-se que o romance é monstruoso, mas, com uma ou outra excepção, trata-se de um monstro bem-educado e bastante domesticado. O romance anuncia-se por sinais claros, que não se prestam a mal-entendidos. A preponderância do romance, com as suas liberdades aparentes, audácias que não põem em perigo o género, com a discreta segurança que das suas convenções e a riqueza do seu conteúdo humanista, exprime, como outrora a preponderância da poesia submetida a regras, a necessidade de nos protegermos contra o que torna a literatura perigosa.” (Blanchot, 2018, p. 229) Mas que acontecerá agora que o romance ou o poema se tornaram supérfluos, desnecessários, não sendo sequer já escritos, como dizia Gilles Deleuze, para a recensão que deles é feita? Paradoxalmente, é no momento em que a concretização se transforma num acontecimento desinteressante que uma velha figura ressurge, talvez agora com outros horizontes: a função autor. Foi Michel Foucault quem melhor pensou esta estranha função que, a partir de determinada época, assombrou e condicionou determinados textos. Mais do que o produtor real destes últimos, o autor foi, durante bastante tempo, a unificação idealizada, o motor escondido que transformava certos gestos em destino, aquele local no horizonte que explicava, que detinha a chave, de um conjunto disperso de páginas, de livros, de textos. Ainda hoje, quando se diferenciam os assim chamados “textos de juventude”, como se os outros fossem a transformação daquilo que, nestes, se encontrava em potência, quando se estabelecem continuidades ou evoluções, é esta figura que surge, comandando de longe a unidade pressuposta de um texto, de uma obra – de uma vida. “Um certo nível constante de valor” entre diversos textos, “um certo campo de coerência conceptual ou teórica”, uma “unidade estilística” ou, por último, um “momento histórico definido e ponto de encontro de um certo número de acontecimento”: são estas as quatro características – que retira da exegese cristã – que Michel Foucault sublinha quando se trata de construir a função autor. Mas o mais interessante é esse “foco de expressão”, essa unidade que se “manifesta da mesma maneira, e com o mesmo valor, nas obras, nos rascunhos, nas cartas, nos fragmentos, etc.”. Esta leitura em profundidade, que faz com que se possa passar indiscriminadamente entre vida e obra, entre a correspondência íntima, os rascunhos (e, porque não, as pequenas notas sem sentido?) e a obra publicada, que vê em todas essas modalidades a expressão de um mesmo conjunto de problemas e de ideias – a persistência de uma única figura – ainda condiciona, e muito, a forma como a literatura é recepcionada – ainda nos assombra, não nos deixando livres dessa “moral de registo civil” que impõe a coerência a um qualquer texto, a uma qualquer vida. Mas que é feito dessa figura que durante tanto tempo fez parte do nosso horizonte, que condicionou, e, em certos casos, ainda condiciona a forma como lemos e como nos relacionamos a um texto – basta pensar, por exemplo, na quantidade de tinta que se gastou para saber quem é Ferrante, se é homem, mulher, que idade tem, etc. e na diferença relativamente a nomes como Blanchot, Salinger ou, de forma diferente, Raduan Nassar? E, principalmente, que é feito dele quando entra em cena o último escritor, quando a obra, o texto impresso, aquilo que é verdadeiramente escrito, deixa de ser o menos interessante? Porque parece haver aqui um paradoxo: o último escritor, aquele para quem a obra se tornou irrelevante, é o império do autor, no momento em que este é verbo feito carne e literatura de parte a parte. No texto de Michel Foucault onde a função autor é analisada surge, a dada altura, um problema curioso, tanto teórico como, também, prático. Trata-se de saber, enfim, onde começa ou onde termina a obra: “Quando se empreende, por exemplo, a publicação das obras de Nietzsche, onde é que se deve parar? Será com certeza preciso publicar tudo, mas que quer dizer este «tudo»? Tudo o que o próprio Nietzsche publicou, sem dúvida. Os rascunhos das suas obras? Evidentemente. Os projectos de aforismo? Sim. As emendas, as notas de rodapé? Também. Mas quando, no interior de um caderno cheio de aforismos, se encontra uma referência, uma indicação de um encontro ou de um endereço, um recibo de lavandaria: obra ou não?” Este problema, cuja resolução não é assim tão fácil quanto à primeira vista parece, encontra com o último escritor uma forma de diluição a que podemos chamar de familiarismo, onde a questão já não é a de saber onde e quando começa a obra, mas sim a de saber onde e quando começa o literário. Numa entrevista de António Lobo Antunes, por exemplo, encontramos todo o género de personagens que são tanto reais como, presume-se, ficcionais: a mãe, o pai, o avô, os irmãos, toda a constelação familiar que rodeia Lobo Antunes autor – fazendo com que a entrevista não seja exterior à obra deste mas se situe, de facto, no seu âmago, criando uma espécie de novo género literário. O que raramente se encontra, no entanto, é qualquer tipo de discurso sobre a literatura que escape a essa mesma constelação familiar (mas ele existe, bastando ler um qualquer prefácio escrito por António Lobo Antunes para o comprovar). Não há literatura, mas há suficiente “literário” para diluir qualquer fronteira entre vida e obra – respondendo desta forma a Foucault: se em momento algum o escritor deixa de ser escritor, se gesto algum se coloca à distância da literatura, então até um mero recibo de lavandaria é obra literária. No preciso momento, no entanto, em que o literário se estende sobre toda a vida não será a própria obra que, de facto, se torna supérflua, desnecessária – já não sendo necessário, sequer, escrever? Um bom laboratório para se pensar esta nova figura são, sem dúvida, os festivais. Nestes vemos bem o que acontece quando os mecanismos clássicos de mediação – em particular a crítica e a universidade – desaparecem do horizonte da literatura. E o interessante não é apenas constatar ou lamentar esse desaparecimento mas, acima de tudo, este facto: quando estas duas instâncias desaparecem, elas que zelavam pela função autor, que impunham ao texto uma coerência que, tantas vezes, ele não tinha, a função que ajudaram a criar para controlar a disseminação da palavra escrita não desaparece com elas mas, pelo contrário, atinge um paroxismo que, talvez, só actualmente é possível. Já não se trata, portanto, de ordenar um conjunto mais ou menos disseminado de textos, de lhes impor uma coerência, uma ordem, de retirar todas as incongruências, todas as contradições – esta maneira de ser bastante peculiar do texto literário, que está sempre num outro lugar que não aquele onde é esperado – mas de ver ressurgir a função autor segundo aquilo que Silvina Rodrigues Lopes chamou de “desígnio da realidade em directo”. E não há lugar-comum para-literário que não seja arregimentado: quando é que nasceu o amor à literatura, quando é que se começou a escrever, quando é que se começou a ler, se o livro vai desaparecer ou não, qual o futuro da literatura – o interesse, a preocupação, com o futuro da literatura é constantemente reafirmado. É pedido ao escritor que se interesse, que seja interessante (e pode até falar de literatura, caso não seja demasiado maçador), que se preocupe, que seja, enfim, um professor público , o garante de um moralismo peculiar às letras que aposta tudo em arrancar-nos à menoridade. Talvez seja por isso que esta nova fenomenologia, onde o autor dispensa qualquer forma de mediação, onde, pelo contrário, a sua figura nos é imposta – a sua centralidade é de tal forma assinalada que não nos podemos subtrair a ela – não é isenta de um certo moralismo que se encontra como que pressuposto nos protocolos que regem o discurso do meio literário. Não se trata, portanto, de notar que certo tipo de discursos não têm lugar – numa forma de controlo negativo do discurso –, como aconteceu recentemente com declarações de Hélia Correia, mas de perceber que há toda uma produção discursiva que desenham uma figura bastante determinada do que deve ser a literatura e o lugar desta: o amor a ela, a importância que este tem dentro do corpo social (dando lugar a uma relação puramente económica onde, sem utilidade, a literatura continua no entanto a preencher uma função), a dedicação à causa literária, que não passa necessariamente por uma relação à tradição, todos esses lugares por onde o escritor tem de passar para ser reconhecido enquanto tal – não há nenhum que não goste de escrever, nenhum que não dedique a isso a vida, nenhum, na realidade, cuja memória não passe necessariamente por livros. O leitor chega a uma qualquer feira do livro ou festival, depara-se com o escritor, que é mais ou menos interessante do ponto de vista físico ou mais ou menos envolto numa qualquer aura que aquele que o observa, em última análise, cria, ouve-o com ou sem atenção a percorrer estes lugares já clássicos do literário, as histórias de infância, o momento em que a escrita nasceu, o lugar de descoberta da literatura, identifica-se com ele nesse amor que o prende às palavras e a esse estranho objecto onde prendemos aqueles que queremos que durem além da morte, pergunta-se pelas rotinas, pelos horários. E, no fim, compra ou não compra o livro – comprará, sem dúvida, porque só irá ouvir aqueles que de antemão conhece, apesar de esse gesto ser, na realidade, o menos importante. O último dos escritores tornou a escrita supranumerária, excedentária e sem lugar. Em última análise desnecessária, com ela desaparece outro dos lugares clássicos da literatura: a noção de obra. Porque o autor, na sintomatologia clássica que Foucault desenhava, dizia sempre respeito a essa noção, tão ou mais obscura como vimos, do que aquela que a pretende controlar.

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