Two Strangers in a train e Patricia Highsmith: uma questão de género




    Uma biblioteca parada, é sabido, move-se. Os livros que a compõem viajam, porque o corpo literário sofre mutações, reorganizando-se com a força da compressão a jusante, que acumula por cima o peso novo de organizações, repetições, reapreciações. Volumes há que se tornam invisíveis, outros que saltam contra os olhos ou parecem multiplicar-se, outros que, reptantes, se insinuam no meio de prateleiras insuspeitas, entre capas respeitáveis. Quem tenha lido durante uns anos perceberá que se formam erros na organização dos tomos, nascidos intrínsecos na classificação (e logo posição) que lhes conferiu, ou seja, na pose em que os leu, na postura mental com que os acolheu e depois motivou a escolha do sítio particular onde os viu de seguida envelhecer, e ganhar pó. Numa estante actualizada, isso acontecerá por necessidade de espaço e ampliação. Mas também porque o seu dono envelhece e, sendo tão bravo que se disponha a releituras, se arrisca a encontrar textos novos onde as palavras nunca mudaram. Nesse sentido, mesmo uma estante velha se transforma, não porque mude fisicamente, mas porque a cabeça de quem a leu se muda – o olhar lançado a uma estante parada nunca é o mesmo, primeiro porque a memória falha e vai transformando em ruína o que se leu, segundo porque mesmo uma visita nova nunca será feita pelo mesmo viajante. Não é só, porém, o envelhecimento do leitor que renova a estante morta: é o renovamento do mundo. 
    Assim acontece, e para chegar a Highsmith, com aquilo a que chamaremos de subgéneros. O romance está cheio deles: policial, ficção-científica, mistério, fantasia, narrativa romântica, terror, etc, etc. São filhos pouco considerados da literatura, sobretudo quando nascem. De início apontados a um alvo que é as mais da vezes comercial, encadernados numa repetição formal e temática pouco honrosa, são coisas para passar o tempo e, para o leitor sério, apenas uma estação intermédia no caminho, ou espaço para recuperar o fôlego ou lugar de infância, um primeiro modo de abrir os olhos. O que talvez o leitor sério não note, mas, havendo mais atenção, pudesse servir como anúncio das tantas metamorfoses a que assistirá depois, é que muitos dos que considera como canónicos e se dispôs a ler para educação do espírito, começaram a sua carreira na província do subgénero e foram subindo a pulso até às prateleiras mais altas da biblioteca. Não faltarão compatriotas a apontar Huckleberry Finn como o grande romance americano – contudo talvez o dono da estante morta se arrisque, incomodado, a encontrá-lo na prateleira da literatura juvenil, encapado a cores garridas e guarnecido com os garatujos infantis de um pai, ou de um avô, ao lado de As Minas de Salomão. Muito tem acontecido, neste aspecto, com os livros de ficção-científica, cuja denominação alternativa (literatura de antecipação) tem, neste caso, um duplo sentido. Editoras seríssimas, albergue de Lucrécio e Melville e Agustina, dedicam-se hoje a publicar, como clássicos intemporais, livros que percorremos sem pudor nenhum na colecção Argonauta, servidos por péssimas traduções e lombadas que se desfaziam. A crónica de uma serva, da consagrada Margaret Atwood, apareceu primeiro na colecção Nébula (ao lado de um clássico tão pouco conhecido como O clã do urso das cavernas), The man in the high castle, o Do androids dream with electric sheep, do hoje prestigiado e muito filmado  Philip K. Dick, pareceram-nos secundários, face à muito mais imaginosa space-opera de E.E. Doc Smith, ou os livros de Isaac Azimov e de Artur C. Clarck, esses sim considerados como o acumen intelectual da espécie. Por lá andava também, entretanto reeditado pela Antígona, A Guerra das Salamandras, do mesmo senhor que inventou, roubada ao irmão, a palavra robot. (Livros claramente desta raiz, mas desde logo fadados a uma atenção diferente, que nunca os deixaria cair no fosso do subgénero, talvez porque os autores se tivessem dedicado antes a temáticas mais clássicas, seriam os estabelecidos 1984 ou Admirável Mundo Novo). 
    Não fui verificar, mas não me admiraria nada se muitas das agora aclamadas obras de Patrícia Highsmith tivessem tido a sua primeira encarnação nas fileiras da colecção Vampiro. A história deste Two Strangers on a Train, que nos serve de mote, muito conhecida, glosada por Hitchcock, foca-se num dos temas preferidos do romance policial – o crime perfeito. Dois estranhos encontram-se por acaso num comboio e comentam, um mais a sério do que o outro, como seria fácil escaparem à lei se trocassem de alvos, e cada um se dedicasse a eliminar o objecto odioso na vida do outro (respectivamente um pai autoritário e uma ex-mulher renitente em desfazer os laços libertadores). O coração do livro, pedra de toque de qualquer romance policial, gira à volta dos motivos, e é a troca de motivos que o faz original – sem percepção de uma causa, ou ligação entre algoz e vítima, torna-se impossível estabelecer um nexo de causalidade e isso permite, em hipótese, a impunidade (coisa que, a existir na vida real, é muito rara na literatura, ou não tivéssemos nós tido Dostóievski para pensar no caso). A textura do livro, aquilo que o vai guindando à prateleira onde agora o encontramos, é a subtil progressão de uma noite de copos e seus dislates até à consumação do acto horrível, muito empurrado, claro, pelo fundo claramente perturbado de um dos assassinos. Neste, aquele que propõem o acto, e nunca se arrepende dele, há a lamentar a permeabilidade quase histérica (et por cause) dos americanos às leis imaginadas por Freud, a fornecer uma chave demasiado óbvia: o desejo do tresloucado filho-família, que odeia o pai, castrador, e nutre um amor platónico pela mãe, nada mais é que uma transcrição óbvia do complexo de Édipo, e a relação criminal estabelecida com o outro lado do enredo (um arquitecto inquinado pela culpa) a sublimação de um desejo homoerótico nunca consumado. A permeabilidade, quase histérica, de Freud aos mitos gregos, vê-se no modo como o enredo psicanalítico se adequa à tensão fantasmática da tragédia grega, em que tudo se encaminha sob os nossos olhos para o mais terrível final, sem que nada possamos fazer para o evitar. Pelo meio, um motivo comum na autora: a identidade. Quanto a isto, a citação, tirada ao arquitecto hesitante e cheio de culpa,  diz tudo: “he feldt rather like two people, one of whom could create and feel in harmony with God when he created, and the other who could murder.”
     Chegados aqui, o começo de uma crítica seria aquele que interrogasse o que são os limites do subgénero e em que casos vale a pena pensar que foram derrubados.  Ou se vale a pena fazê-lo, ou se eles têm, os géneros e subgéneros, algum valor facial. Vale, o psicologismo desta obra, que baste para mudança na estante, o voo para o sítio onde o esperam as colectâneas de clássicos, com os contos do Tchekhov e os esperados Tolstois, Frei Luís De Sousa e traduções de Goethe? O manejo perfeito do realismo americano é o mesmo que apreciamos em Bellow, a densidade dos personagens aquela que esperamos de Woolf – ou é por ter tido o rótulo de romance policial que a sua leitura nos surpreende, expectantes que estávamos da repetição de fórmulas, ambiciosos de apenas mais uma reconfortante resolução de um mecanismo whodunit, na sua apelativa simplicidade? Pergunta correlata: não tem a literatura séria também os seus próprios espartilhos, as convenções e signos de que não ousamos prescindir? O que vale mais para o leitor: um bom romance de capa e espada, ou uma má imitação de Hemingway? 
    São questões de género. 




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