O QUE PODE UM CRÍTICO DIZER DE UM CLÁSSICO? O QUE PODE O CRÍTICO DIZER?







     Comecemos a conversa desviando o enorme paquiderme das definições, esse que nos enfrenta bramindo desde o escuro interior da sala. O que é um crítico? De que depende a medalha que pende, brilhando a prumo, da casaca do vidente? Ao contrário do que prometia o empurrão, este é um assunto que só despacharemos no final da acta, porque exará-lo deriva precisamente do que dissermos, visto que (e esta é a definição que pretendemos mostrar) o crítico não é senão o discurso dele e é isso que o define. Mas devagar: apresentemos, para não incomodar ninguém, a palavra crítico como o holograma de qualquer coisa como: aquele-que-escreve-sobre-o-livro. O autor da recensão, alguém que foi colocado num sítio e em cujo percurso, meio nebuloso, teremos, por enquanto, de confiar. 
     Feito o desvio, queremos pôr uma primeira pergunta simples: o que pode um crítico dizer de um clássico? O caso é paradigmático e pode servir como exemplo nuclear deste imbróglio (e por imbróglio referimos o paradoxo que é alguém pôr-se a olhar, de lado e por isso com a arrogância que precede qualquer afastamento, aquilo que é de certeza bem maior do que ele). Imaginemos (para o efeito serve) uma nova edição da Odisseia. E matemos já o sábio, o académico, o especialista em grego antigo ou alguém que ainda conheceu alguém que leu os comentários originais de Aristarco da Samotrácia. Imaginemos apenas que aquele-que-escreve-sobre-o-livro o faz porque ele, o livro, lhe chegou em vida às mãos e as suas fatigadas retinas recaíram sobre ele, situação em que mais do que um se terá encontrado, pelo menos uma vez na existência. Imaginemos alguém que não tivesse escolha e lhe ordenassem, como num conto de fadas, um desafio fatal. Ora escreve, amigo crítico, sobre a edição que saiu agora, em solo pátrio, desse clássico máximo da literatura. O que pode o crítico escrever sobre a Odisseia? Há terrenos óbvios: a profundeza do prefácio, a oportunidade dos rodapés, o peso do tradutor (é um poeta, é um linguista, partiu do original ou cheira-nos que terá inventado em demasia?), o cotejo com tentativas anteriores (não havendo, o terreno torna-se subitamente plano, e bastará um pouco de hipocrisia para salvar a vida). Examina-se, portanto, a edição. E, se nos puxar para a didáctica, explicamos ao leitor quem era Homero, duvidamos da sua existência, falamos em vozes colectivas e na tradição oral, imaginamos o aedo, evocamos o esplendor perdido da antiguidade e despachamos o medo, ansiosos por cairmos sobre alguém mais conterrâneo, ou cuja contemporaneidade possamos desancar sem que nos fiquem a doer os punhos (se formos tímidos, escolheremos aquele a quem, pela sua estatura, o nosso judo não possa magoar, que é para não morreremos com os remorsos). 
      Mas a resposta, lamentamos, não pode ser essa, porque não é essa a pergunta. A pergunta é, lembremo-la: pode o crítico escrever sobre a Odisseia? O poema, a história épica, os personagens. Se pode, sem parecer um adolescente estúpido, expor aquilo que a sua cabeça lhe diz sobre o conteúdo ele mesmo, com a displicência que qualquer tirano de cidade arcaica se sentiria autorizado a utilizar, lhe aparecesse o cego no areópago em suas voltas. A resposta a isso é (propomos nós): depende do que disser. Ou seja, a inserção do dístico que a distingue, à crítica, é póstuma. A medalha é espetada no cadáver que a ganhou. Dizendo de outra forma: se o texto servir é uma crítica, e basta a crítica para haver um crítico (ou, sendo exactos, para ter havido um crítico). Podemos, claro (e talvez devamos) tentar o gesto da ciência, desenhando a previsão possível que permita, por um lado, agraciar-nos o ego com o fulgor elogioso das adivinhações, e por outro propor a teoria que talvez permita evitar, ao menos uma vez, o cansativo processo da tentativa e erro: a boa previsão permite o método, a correcção do método apura a técnica, a técnica acerta os resultados. Pensemos, então, o que permite prenunciar, na cabeça do recenseador em acto e pretendente a crítico, o tal resultado recuperador de sentidos e útil à multiplicação literária. A que deve obedecer a voz do crítico?  A voz do crítico tem de depender, sem desvios, daquilo que pensar da obra (obviedade não tão óbvia, se examinada). Adequar o pensamento à escrita é, para além de um exercício de exactidão e engenho que só nasce com treino, também uma prática da honestidade. E a primeira sinceridade do crítico é não falar nunca do que não lhe cause um eco. Façamos, pela milionésima vez, um uso errado da célebre frase de Wittgenstein e apliquemo-la num contexto que não lhe serve, mas que nos serve a nós (quem escreve nasceu para ser roubado): “do que se não pode falar é melhor calar-se”. Se não podemos escrever sobre a Odisseia (recuperemos o exemplo) então não o devemos fazer de todo: deixamos o anúncio da edição para os anunciantes e o leitor ao entusiasmo que as suas entranhas possam gerar sozinhas. Mas se o que nos pedem (o jornal, a consciência) é o contrário, então devemos definir o campo. E pensar: se a obra não serviu para produzir em nós reverberações, então não serve para nada e se não serve para nada não é digna do que tenhamos para escrever. A literatura (até ver) faz-se de humanos para humanos e o dever do crítico é detectar essa ressonância. A Odisseia é o tal clássico e resistiu ao tempo, como Ulisses aos monstros, porque permaneceu cantando – opondo aos gritos das sereias os seus próprios murmúrios. À Ítaca onde chega o livro, o tempo moderno que o aguarda desde sempre, cumpre-lhe ouvi-la com os seus próprios ouvidos. Se chegar apenas com a língua de onde partiu, é como se chegasse muda. Se chega com a nossa, então merece toda a violência. É de fato e gravata, de calças de ganga, sentado no carro, em frente da televisão, que o crítico se dispõe a escutar o livro, e é com a horrível roupa da modernidade que deve ouvi-lo.   Não é mascarando-se com lençóis, ou roubando a lira no antiquário. O crítico pode falar dos clássicos, sim, mas o seu dever é evitar a exclamação (a exclamação pertence ao interior da liberdade sentimental do leitor, e essa é muda). O crítico pode, o crítico deve falar da coisa em si. Daquilo que está na Odisseia, daquilo que gostou ou não, daquilo que ainda funciona ou está ferrugento. É um livro novo, o que lhe chegou às mãos, porque se não for novo mais vale deitá-lo fora. Neste caso, quem-escreve-sobre-o-livro retira-se: cachimbo deitado ao rio, óculos de lentes grossas esmigalhados sob os milhares de pneus da urbe, ei-lo descendo o degrau, e confiando tudo ao silêncio. Caso contrário, avança, e vem dizer se gostou de Ulisses, se é verosímil a sua manha ou se a moralidade de Penélope não é só um artifício. Fá-lo-á sob o peso dos séculos, esmagado pela tradição, acorrentado pelo milhão de vozes precedentes, ciente da estreita distância que medeia a presunção de uma confissão de fé – mas foi esse o contracto que assinou e nas alíneas vem o momento em que terá de equilibrar-se, dorido, sobre a ponta dos seus próprios dedos. Mudando de imagem, digamos antes que o aspirante acaba de esticar o pescoço: do outro lado o leitor decide se há-de largar ou não a lâmina da guilhotina. 
    Chegados ao leitor, voltemos atrás para repetir: não, não é o acto de escrever que faz o crítico. É o acto de quem o lê, ou melhor, é o objecto sólido do texto. (O que é o objecto sólido do texto? É uma liga de metais, já lá vamos, é a seguir).  Ao crítico pede-se que não tenha nascido hoje: seria estúpido. Ao crítico pede-se que tenha lido. E que pense. E que seja honesto: simpático ou não, mais ou menos hábil a esconder a irritação, isso são temperamentos e quem não os souber apreciar vai comer sempre o mesmo pão. Que afaste as suas moscas, as que o mordem em privado, e não as traga para a arena. Mas que não ignore as dentadas que o próprio livro lhe dá e o escoucei de volta, se for o caso. E que no final se mostre a si, como mostrou o livro, de modo que o leitor perceba que ali se formou uma dupla e que essa fria fusão não é um mistério da física, mas o mistério, ele próprio, da literatura. Ouçamos Witold Gombrowicz nos seus diários, escritor ensimesmado, adorador de umbigo, narciso analítico e feroz guardião da própria obra, auto-reflector de si e por isso muitíssimo sensível a farejar todas as tentativas de anulação do eu: “Desta maneira, estabelecendo contacto com a pessoa do autor, não deveria o crítico fazer subir ao palco a sua própria pessoa? Análises, sim, sínteses, sim, divisões e paralelos, está bem, mas que tudo isso seja orgânico, sanguíneo, latejante e permeado pelo crítico, sendo ela a falar na sua viva voz. Críticos! Escrevei de modo que, após a leitura do vosso artigo, se fique a saber se foi escrito por um loiro ou por um moreno.” 
      Tentando agora responder à segunda demanda (o que pode um crítico dizer?), diríamos: tudo. O crítico pode escrever sobre tudo. Tem tudo o que interessa do seu lado: a arrogância, a juventude (nos sentidos latos das palavras), e aquilo que é. Estando nisso, naquilo-que-é, aquilo que leu (que será muito e nunca será tudo, e talvez nem convenha), o que foi (como todos, o crítico é o resumo, ou se quisermos, a recensão em acto, daquilo que viveu) e, palavra nova com que nos permitiremos introduzir um último elemento, o seu próprio estilo. O estilo salva. E aqui talvez encaixássemos de novo a imagem da medalha. Ou, para ser diferente, uma palavra retirada ao mundo académico. Com que diploma escreve o crítico as suas críticas? Qual o currículo? A pergunta só é difícil se não a aplicarmos a outros lados da escrita (e aqui está já inclusa, é evidente, a noção de crítica como género literário). Com que curso escreve o romancista seus romances e o poeta seus tremendos versos? Dir-me-ão: com o navio que lhe deu a sua obra. Mas se for nauta de primeira instância? Pois, é o isso-tal (não como há como não invejar aos teutónicos a graça dos nomes compostos, que tanto facilitou a vida aos seus filósofos, complicando as traduções). Pois, é o isso-tal que lhe está em mãos, aquilo que antes era dado pelas musas, o talento com que deve atirar-se ao texto, e levantá-lo. Ao crítico, e aqui pedimos a Witold que nos ouça novamente, pede-se que o seja em tom exclusivo. Mas também, acrescentamos nós, de tal modo que a voz possa ser encaixada, sem desmerecimentos, no reino da literatura, ou seja (para arranjarmos uma definição rápida de literatura) no reino daquilo que possa ser lido sem uma defesa, nem qualquer projecto. Tal como o poema se ausenta, quando lido, da vida pessoal e prática que o motivou (sempre pueris, os motivos dos poetas, quando comparados com o que motivaram, tão canhestro o móbil, quando comparado com o resultado, se o resultado for o que se encaixa na caixa da literatura), tal como a boa ficção se ausenta do seu tema, e há-de interessar o leitor pelos motivos da leitura ela mesma e não por aquilo que conscientemente se adquire em quantum de informação (no que se distinguem, por exemplo, um romance e um manual de instruções), assim queremos que a crítica assente no seu próprio solo, encantando o leitor pelos gestos que lhe faz e o modo que apresenta e o mavioso tom do seus enleios, e não apenas (embora isto, concedamos, também interesse) pelo esquadrinhamento que adianta quanto ao interior da obra (apresentada) e o modo como foi tecida. O crítico, para resumirmos, há-de ser o escritor da crítica, ou não será nada. 
    Assim terminamos, com o pensamento voltado lá para cima, onde a lâmina oscila, tremida pelo leitor, prestes a dizer o fim e a certeza do que nos acabou de ler. 


    (Esclarecimento sobre o retrato escolhido. Não se trata de Homero, é claro, não há imagens do cego e se houvesse não seria com este ar de renascença. Trata-se de Montainge, senhor, também ele, de um clássico, cuja aparente inabordabilidade, enquanto coisa que inventou o seu próprio começo, impressionou o dono destas linhas, atando-lhe as mãos enquanto o interrogava, precisamente, quanto ao limite das opiniões. Logo ele, pensamos agora, que tinha tudo a dizer sobre o que calhava).   





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