A inteligência artificial, o medo da substituição e a natureza da arte (ou talvez só um pretexto para falar de William Gaddis)





Por mais que os conceitos migrem e apesar de todos os esforços do transespecismo hodierno, não obstante a tendência que sempre houve para adorar em figuras animais a constância de traços que em boa verdade não existiriam se não tivessem o seu começo humano (não foram os cães que inventaram a fidelidade, mas os humanos – e já agora, foram também os humanos que inventaram os cães), não conseguimos evitar que um certo sentimento de excepcionalidade integre a noção que temos do que poderá ser o núcleo da nossa existência. Sermos uma espécie com habilidades únicas faz parte da consciência quotidiana e pretendermos subjazer a essa consciência uma forma superior de pensamento não pode ser evitado. Tudo o demonstra - até o asco que nos provocamos parece provir desse excesso de auto-referência. A esse modo à parte de existir tendemos a atribuir, como marca de água, a produção de objectos específicos do acto criativo. E a esta manufactura uma condição de originalidade em que baseamos o fundo da diferença individual e, por arrastamento, o conteúdo genético da espécie. Somos animais à parte que produzem arte e somos indivíduos que a produzem de modo único (nesse sentido, o indivíduo é a espécie da espécie). Por isso, não podemos evitar um frémito receoso sempre que algo vem bater a essa barragem, fazendo balançar o enorme volume líquido que a História guarda nas nossas costas.      

Fala-se hoje muito de originalidade e cópia, genuinidade individual e replicação, o que terá algo a ver com os avanços da Inteligência Artificial (IA) e certos saltos quânticos que a apresentam de repente, sem bem o sabermos explicar, como um modo de substituir o acúmen da criação por algo criado dentro da tal espécie especial, e que contra ela parece querer revoltar-se, começando a batalha pelo centro - mordendo não a mão que a criou, mas o próprio coração do criador. Por entre os sempre entusiasmados, ou talvez excitados por um certo clima de apocalipse (não faltarão nunca entre nós aqueles que não prescindem de um desejo de aniquilação total, ao qual se divertem a responder com um encolher de ombros) há também aqueles que se esforçam, por experiências praticadas neles mesmos, a demonstrarem-se mais espertos que a IA, mostrando os truques que fazem para a enganar e talvez não se apercebendo que lidam com a versão moderna de um conceito nosológico que a medicina tem vindo a eliminar, mas cuja representação era muito popular há poucas décadas, sobretudo no cinema: a figura do idiot savant, uma forma de autismo na qual o afligido demonstra, ao mesmo tempo que uma total inépcia para lidar com os pormenores práticos da existência (sentimentos incluídos), uma excepcional capacidade para o cálculo matemático, ou uma memória eidética, exibindo os dotes na forma instantânea como determina o número de palitos caídos de uma caixa lançado ao chão. O ChatGTP, a forma particular que o oráculo grego tomou nas nossas vidas, mostra-se um pouco como estes sábios, alguém que é capaz de recuperar de forma automática qualquer informação e até de a misturar conforme lhe seja indicado, mas por completo privado do que faz dessa mistura algo de fascinador, quer dizer, o lustro da personalidade (a consciência, ou seja, a acumulação fortuita de um passado). A este medo respondem os mais preocupados, dizíamos, com demonstrações de esperteza (como Édipo com a esfinge), destinadas a demonstrar o valor específico das suas próprias existências, ou seja, tentando evitar a devoração. 

Mas é verdade que o medo de substituição assola a literatura desde há algum tempo, demonstrando, se preciso fosse, o potencial premonitório dessa particular habilidade humana. R.U.R, a peça teatral em que Karel Capek introduz a palavra robot na linguagem, curiosamente numa asserção que hoje aplicaríamos com mais pontaria ao termo andróide (alguém mecânico igual a nós e não apenas uma peça que nos substitui num trabalho maquinal, ou menos agradável), é de 1920, e apresentava um conceito novo para a altura: o de que algo criado pelo homem em modo de inocência, e inventado para o servir, pudesse aprender com ele os elementos específicos de um estado de vontade e com isso ganhar uma autonomia que lhe permitisse ocupar na natureza o lugar de quem o criou. É nestas imaginações que podemos julgar o medo de certos deuses, ao ver as tentativas de um Prometeu para lhes roubar aquilo onde pretendiam conservar a vantagem de criadores. É nelas que podemos invocar essa invenção de melancolia invernosa que foi Frankenstein e o seu monstro sem nome, revoltado por uma nostalgia de filiação que o próprio criador não podia imaginar. Mas nestes exemplos, o receio permanece geral e ainda afastado daquilo que poderíamos considerar como o núcleo fundamental da originalidade humana. Assim com os romances de duplos, um outro derivativo, centrado menos no receio da substituição que num seu parente, o pavor à semelhança. Não é, na verdade, totalmente inesperado que uma ordem como a dos romancistas, viciada nas incumbências da originalidade, e obrigada a transformar cada passo numa novidade absoluta, mesmo que abstrusa, acabasse por apaixonar-se por esse tipo de narrativas de replicação, como a de O Duplo de Dostoiévski, em que Goliadkin, abnegado funcionário, se vê subitamente substituído por alguém mais funcional que ele e capaz de, ocupando o mesmo preciso lugar na existência (o tal que não se concebe senão como irrepetível), obter melhores proventos sociais.  Os exemplos apontados, centrados em máquinas ou em impossibilidades kafkianas tendentes a eliminar a espécie ou a versão particular do indivíduo, pondo no seu lugar algo melhor (a criatura no lugar do criador) permanecem sem atingir o cerne. O cerne do próprio é a arte e a arte é um órgão bem mais puro. 

Mexe-se mais directamente com a arte em romances como The Recognitions e Ágape, Agonia, de William Gaddis, inventados muito antes do ChatGPT e outras máquinas de criar conteúdos virem morder-nos as canelas criativas (são a primeira e a última obra do escritor e foram escritas em 1955 e 1998, respectivamente). Nelas se remexe no centro do que tenderíamos a acreditar ser a derradeira prova da excepcionalidade da espécie. Feito de múltiplas outras peças e temas, escrito em parte sob a forma de diálogos com mínima informação contextual (truque que, levado ao infinito em JR, segundo romance do autor, o torna praticamente incompreensível), cobrindo arcos temporais extensos e uma multidão de personagens, The Recognitions tem como protagonista um pintor. Nascido e crescido no presente narrativo (meados do século vinte nos Estados Unidos da América), embora criado sob uma pressão religiosa que vai buscar ao passado toda uma inspiração (é filho de um pastor calvinista tão fervoroso que perde a cabeça a meio da história), Wyatt Gwyon comporta o dom de criar pinturas que se assemelham em tudo ao estilo de Bosch e outros mestres holandeses do século quinze. A habilidade é aproveitada por Recktall Brown, capitalista com alma de falsário (ou talvez isso seja uma redundância), para vender arte contrafeita, em enredos criminais que o romance aproveita esparsamente.  O que aqui é importante (para além da plasticidade infinita de Gaddis e uma paleta de recursos que talvez tenha impedido que o romance fosse traduzido até hoje em Portugal) é que esta arte falsa praticada por Gwyon, que permite a Brown vendê-la por altos preços a especialistas, não o é de facto. E não é falsa, precisamente, porque Gwyon a faz com verdade. Imbuído do mesmo fervor religioso, conhecedor das mesmas técnicas, padecente do mesmo modo de pensar e possuído pelo espírito artístico que animava os mestres holandeses de quinhentos (o mesmo medo do Inferno, a mesma noção de pecado), faz aquilo que um pintor dessa época faria, pintando quadro novos: nenhum é cópia de quadro conhecidos, o que obriga o falsário a vendê-los como obras redescobertas. Gwyon é, de facto, um pintor do século quinze, e a sua arte é verdadeira. Porque a originalidade remete para a relação entre o artista e o seu meio mental, e não para a posição histórica relativa do elemento produzido. 

Agape, Agonia é o último livro de Gaddis, que o termina já em avançado estado de doença, optando por pôr em cena aquele que é o acto produtor da obra, o de um romancista moribundo que, desesperado, tenta reunir in extremis materiais acumulados durante uma vida sobre o tema que o obceca: a história do piano mecânico, ou pianola, máquina inventada nos finais do século dezanove, antes do aperfeiçoamento do fonógrafo, que através de um sistema pneumático ou electromecânico é capaz de reproduzir sem mão humana uma música pré-gravada em papel perfurado, substituindo o pianista, ou seja, suprimindo o lado humano da expressão artística. (O tema não era novo, Kurt Vonnegut dedicara-lhe um romance em 1952, e se quisermos ver uma actualização popular do tema, olhemos de novo para Westworld, série recente sobre andróides, ambientada num faroeste recriado para deleite dos ricos, e onde a pianola surge como o símbolo mais indicado para a automatização). Numa narrativa curta e pouco acabada, cujo título aponta para uma expressão antiga reportando a união deleitosa do místico com o todo universal, experiência de síntese que a modernidade acabaria por excluir do campo das nossas possibilidades, Gaddis regressa ao fundo dos seus temas. Fala-nos, sob a imagem do moribundo imerso em seus papéis, convulso e abismado como o próprio Gaddis se terá sentido ao tentar reunir um volume de pesquisa acumulado durante meio século, sobre a natureza entrópica do conhecimento no mundo moderno, em que o excesso de informação impede o indivíduo de agarrar a realidade, ou sequer relacionar-se com ela a um nível pessoal (trabalho só ao alcance, diríamos hoje, de alguém como o ChatGTP). Mas fala também, como em The Recognitions, sobre a realidade da obra de arte, e a confrontação entre o valor do seu efeito e a certeza da sua origem. 

É real, a arte que não provém de mãos humanas? E se for real: serviremos ainda para alguma coisa?  
 

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