Cormac McCarthy: o trabalho de fazer ascender as trevas

 

Cormac McCarthy já não está entre os mortais. Aos 89 anos, depois de mudar a literatura com 12 romances, quatro argumentos para cinema e duas peças para teatro (e depois de ganhar meia dúzia de prémios essenciais e nenhum Nobel, cumprindo a tradicional lição de miopia deste grémio),  a grande figura tutelar do romance americano morre, interrompendo a obra e entregando-a de uma vez por todas ao leitor.

Pese embora a tendência que tenhamos para julgar eternas as figuras totémicas da literatura, olhando com a frieza possível talvez sejamos obrigados a concluir que o que nos deve espantar em McCarthy não é que os livros tenham terminado, mas que o seu milagre pudesse ter durado tanto. Porque foi em 2022 ainda, com dois romances chave da sua obra, que se conclui, numa idade em que não estamos já habituados a semelhantes fulgores, uma história que tem início em 1965 com a publicação de O guarda do pomar. É uma obra de natureza genésica (com a referência a pecado e destruição de paraísos patente logo no seu título), onde uma obscuridade de metáforas e escondimentos de enredo talvez não fizesse pressupor a clareza violenta e quase abstracta, nos pormenores que convoca, da sequência de westerns que viria a marcar a imagem principal do autor. 

Meridiano de Sangue - Ou o crepúsculo vermelho no Oeste, de 1985 e depois o conjunto de romances conhecidos em conjunto como Trilogia da Fronteira (Belos Cavalos, A Travessia, Cidades da Planície), resolvem a figura principal do autor, reunindo os temas mais conhecidos. Em Meridiano de Sangue é talvez onde se espelha melhor o confronto da inocência com a raiz do mal absoluto, desenhada nos personagens antagónicos, o protagonista que conhecemos apenas como o rapaz e o diabólico Juiz Holden. Ambientada na fronteira entre os Estados Unidos e o México, nos meados do século XIX, relatando os feitos de um grupo de militares de formatação irregular, enviado numa missão de pacificação local que rapidamente se transforma numa longa orgia de morte e vilificação,  a história revela o confronto com os traumas históricos da América, em que o avanço da civilização sobre os desocupados limites do país acaba descrita como um continuada violação, perpetrada  pelos invasores sobre os autóctones  e  o mundo animal. A razia de escalpes, profanações de cadáveres e  ciclones de sangue ficarão para sempre em quem leia o episódio de vingança de uma tribo comanche sobre a incauta cavalaria americana: «e viu-se então um friso bárbaro de cavalos impetuosos de olhar esgazeado e dentes arreganhados e cavaleiros a segurar feixes de setas entre os dentes e com escudos a tremeluzir no meio do pó, no lado oposto das fileiras já desbaratadas dos recrutas, sempre ao som do pilar das flautas de osso, cavaleiros que se deixavam cair sobre o flanco da montada com o calcanhar preso numa tira de couro e os seus arcos curtos vergavam-se por baixo dos pescoços estendidos dos garranos até terem cercado a hoste e terem-na cortado em dois para logo tornarem a emergir como bonecos de feira, alguns com rostos de pesadelo pintados no peito nu e perseguiam os saxões desmontados e desferiam-lhes lançadas e golpes de massa e saltavam dos cavalos empunhando facas e corriam de um lado para o outro num trote peculiar de pernas arqueadas quais criaturas compelidas a adoptar formas de locomoção inumanas e arrancavam as roupas dos cadáveres e agarravam-nos pelo cabelo e passavam as lâminas a toda a volta do crânio tanto dos vivos como dos mortos sem distinção e davam puxões para soltar as perucas sangrentas e retalhavam a esmo os corpos nus, arrancavam membros, cortavam cabeças estripando os estranhos torsos brancos e erguiam alto grandes punhados de vísceras, órgãos genitais, alguns dos selvagens tão besuntados de sangue que quase parecia terem-se rebolado nele como cães e alguns caíam sobre os moribundos e sodomizavam-nos entre altos brados lançados aos companheiros». Ou no final talvez reste a imagem da incessante matança dos bisontes, com o vulto do seus corpos acumulados até ao infinito, ultrapassando qualquer réstia de racionalidade, num espetáculo de violência que, revendo em negativo boa parte da imagética americana, passa para lá de qualquer  hipótese de remissão cultural. 

Na Trilogia da Fronteira lemos westerns mais canónicos, embora habitem território semelhante. Histórias de vingança e fatalismo, onde luz sobretudo aquele outro lado de McCarthy, que nos faz encontrar nos gestos dos personagens o desenho definitivo de um ato sacramental, como os que usam os personagens na Bíblia ou os actores nas tragédias gregas. Algo, naquele mexer, tem a perfeição das coisas rituais: os personagens movem-se não porque pretendam, ou porque os seus gestos sejam dominados por qualquer resquício de livre arbítrio, mas porque a ordem da história (que é uma ordem de sangue, de balanços retributivos, de coisas por dizer mas totalmente opacas enquanto obstáculos mortíferos, de imposição do phatos, embora também de algum amor humano e alguma beleza terral) mas porque a ordem da história assim lhes comanda, conferindo-lhes o hábito de deuses. Para a ampliação do gesto fatalista deste cowboy, contam-se o jeito de ramificar o detalhe de paisagens (análises há que apontam centenas de pormenores botânicos ou zoológicos nas obras de McCarthy, escondidos entre os interstícios das narrativas), de roupas e corpos, a capacidade de fazer uma coreografia dos movimentos mais básicos. Mas conta-se também a arte para eliminar qualquer psicologismo, deixando o leitor às escuras e totalmente dependente do que vê para entender esses mistérios. A mestria deste achado é captável com clareza no já mencionado O filho de deus, obra de cronologia inicial (1973), onde se descreve a história de Ballard, um homem empurrado para a miséria, que se converte aos poucos num assassino em série. Sendo a história contada na terceira pessoa, mas permanecendo o leitor como testemunha central da vida interior da personagem, e não havendo em Ballard, como em qualquer psicopata, o mínimo resquício de culpa ou aversão, eis que o leitor se vê obrigado a participar da inocência do monstro, forçado a aguardar pelo enquadramento final a fim de recuperar o seu próprio eu e se horrorizar com a natureza dos atos. É essa observação exterior de atos sem aparente móbil, ou privados de consciência própria, mas hiper-detalhados, dependendo apenas de alusões nos diálogos, que torna a escrita de McCarthy tão próxima de um estranho e evanescente realismo, mitológico, religioso, mas ao mesmo tempo próximo (pois não é verdade que nada na realidade exterior aos livros, se não a voz e os gestos, nos dão acesso ao interior dos outros, às suas motivações, à escuridão do seu mundo interno?). 

Embora consagrado já nos meios literários, o estrelato de Cormac talvez só tenha ocorrido aos 74 anos, em 2007, quando é entrevistado por Oprah Winfrey, no seu clube de leitura, a propósito do então estreado A Estrada. A escolha de Oprah (o seu súbito bom gosto, diríamos) é tão inesperada quanto a aquiescência do autor em visitá-la. Mas já o tema fazia notar um certo amolecimento. História de um futuro apocalíptico, ocorrido após um desastre nuclear, com uma dupla pai/filho caminhando entre os cadáveres derretidos de  arranha-céus (há toda uma deformação do espaço urbano que mostra um lado diferente na imaginação deste autor), fintando uma caterva de semelhantes cuja tentativa de sobrevivência se resume ao canibalismo. Este é, para que se tenha uma ideia do negrume próprio do autor, o mais esperançoso dos livros McCarthianos, deixando a réstia de uma esperança quanto à remissão dos pecados humanos na pessoa do adolescente em fuga. Depois de A Estrada veio o silêncio, com o autor a envelhecer e rumores cruzando os ares sobre uma história de ficção científica que talvez nunca viesse a conhecer a luz do dia.

O regresso dá-se em 2022, foi há menos de um ano. Não obstante o costumado ciúme dos deuses, McCharthy, com 89 anos, estava de novo entre nós. Há 16 anos longe de originais, acolhido como visitante no Santa Fe Institute, uma organização académica norte-americana dedicada sobretudo às ciências duras, não se nos podia censurar o medo de que não voltasse a dar fruto. Não há, porém, nada que desiluda em O Passageiro e sua sequela, Stella Maris. Neles há tudo o que é McCarthyano e mais aquilo que uma década de convívio com a física teórica e matemática mais rija conseguiu infiltrar naquela interminável cabeça. Não era afinal um McCarthy menor, nem um McCarthy senil, o que nos mostravam, mas precisamente o McCarthy que precisávamos para continuar a crer na literatura contemporânea - na dele e na dos outros, porque as obras genias servem para redimir todas as banalidades adjacentes. 

Em O Passageiro, Bobby Western, filho de um dos físicos que ajudaria Oppenheimer a teorizar a bomba atómica, homem de poucos amigos e logo à cabeça coroado com o enigma de uma desgraça amorosa, tem a profissão de recuperar salvados do fundo do mar fazendo ascender à superfície as carcaças melancólicas dos afundados. É neste trabalho que o vemos remexer num enigma: no interior do avião caído no fundo do mar, falta um dos passageiros que entrava na lista de bordo. Pouco ou nada haveremos de saber sobre ele. Os capítulos seguintes são formas de Bobby, cujas mágoas vamos percebendo (a morte da irmã que amava como amante, um acidente de automóvel que acabaria por varrer-lhe do cérebro grande parte da inteligência matemática herdada), escapar ao entorno cada vais mais próximo do FBI, para quem o desaparecimento do desconhecido adquiriu uma importância tão fundamental quanto obscura. Assomam, à superfície, motivos conhecidos do passado McCharthiano, e não seria errado referir agora aquela que, discreta, talvez seja a obra maior do autor, Suttree. Mencionemos por enquanto a reaparição de um tabu mitológico, que já tínhamos visto em As trevas exteriores (1968), a história de um incesto entre irmãos e do abandono do filho gerado por ambos no meio das florestas dos Apalaches. Naturalizada, intelectualizada como paixão platónica (nos vários sentidos da palavra) entre dois irmãos de QI inigualável, a história de Bobby e Alicia Western (os sobrenomes são tudo menos inocentes quanto a alusões à obra pretérita do autor) é mais uma vez o retorcimento dos inaugurais Adão e Eva, maculados por um pecado original que é anterior a qualquer decisão, que os precede não como uma escolha, mas como uma maldição.  O livro contém, a cortar a negrura, os diálogos mais ágeis e inesperadamente filosóficos da obra de Cormac. Esta é talvez uma novidade (para além da profusão de tema científicos abordados, desde a neurologia dos sonhos às variantes estéticas da matemática). Das falas curtas e cortantes, ligadas ao solo com raízes de metal, passamos nestes livros a diálogos que incluem a seguinte tirada sobre a força fraca do conhecimento: «Preferir um mundo de papel. Restos. Mas nós sabemos outra verdade, não é verdade? E claro que também é verdade que muitos livros foram escritos para evitar queimar o mundo, sendo esse o verdadeiro desejo do autor. Mas a verdadeira questão é sermos nós os últimos da linhagem. Será que as crianças irão ainda albergar o desejo por algo que nem sequer sabem nomear? O legado da palavra é uma coisa frágil, apesar de todo o seu poder, mas eu sei onde estamos, eu sei que estas palavras, que são as palavras escritas por homens mortos há décadas, nunca irão abandonar o teu coração». Frequentemente, as conversas de bar servem para que as personagens secundárias nos esclareçam sobre a cabeça de Bobby, personagem não verbal, como quase todos os heróis de McCarthy: 

«Tu és realmente qualquer coisa. O quê? Uma investigação sobre o remorso? É clássico, isso. O terreno da tragédia. A origem da alma. Enquanto o desgosto ele próprio é apenas o pretexto do tema. 

Não estou seguro de estar a seguir-te.

Eu vou mais devagar.  O desgosto é a matéria da vida. A vida sem desgosto não é sequer uma vida. Mas o remorso é uma prisão. Uma parte de ti a que dás profundo valor estará para sempre empalada num cruzamento que já não serás capaz de encontrar e de que nunca te esquecerás». 

No final de O Passageiro, apocalíptico, cheio de relâmpagos e tempestade, como compete ao estilo do autor, Bobby vislumbra, sem bem ter certeza de acreditar, o Rapaz Talidomida, uma das personagens alucinatórias da irmã, a genial Alicia, cujo suicídio antecede a queda moral do protagonista. Os diálogos entre este e outros personagens fictícios e Alicia permeiam este primeiro livro, mas só serão explicadas em Stella Maris, que recua na história para o momento em que Alicia decide internar-se, por não ter já coragem para contemporizar com a entourage de alucinações que a perseguem. Aqui passamos a ter de lidar com a inteligência em estado puro, o que interpõe de imediato um problema narrativo. Como representar o estado desse génio se não formos nós suficientemente geniais para o entendermos (ou seja, somente leitores)? Talvez emparelhando Alicia com um psiquiatra de inteligência apenas mediana, predisposto a interromper o infalível encadeamento das respostas com a mais ingénuas das perguntas. O resultado dos diálogos entabulados entre Alice e o terapeuta são o que de melhor se inventou na categoria de diálogo filosófico, logo depois dos que Platão criou para nos apresentar a Sócrates.

Mas recuemos, para terminar. Falemos de Suttree, romance de 1979, que descreve as sucessivas tentativas do personagem com o mesmo nome para vencer a vida dissoluta e destrutiva que escolheu para si próprio nos piores lugares de uma vila junto a Knoxville, narrativa que tendo talvez mais humor que as anteriores, não deixa de desenhar um jogo de fugas e retornos que espelham como nenhum outro livro o fatalismo social e anímico de Cormac. O início descreve o momento em que o protagonista, perdido entre as ondulações de luz que a água do rio provoca na cabana miserável onde vive, vê retirar do lodo, como se nascesse das profundezas, o cadáver de um desconhecido. Imagem de uma ressurreição invertida e da luta eterna do homem contra a finitude ontológica que o define, a cena vê-se espelhada naquele que é talvez um dos momentos mais belos de O Passageiro, em que Bobby e um amigo tacteiam num rio turvado pela lama, caminhando dentro de escafandros pesadíssimos sobre o leito opaco e escuro, à procura do grande sáurio de um barco encalhado na fundura, cujo pretendem trazer de novo à luz do dia. Se quisermos, podemos resumir a obra de Cormac a este vício pela desocultação, o impulso para trazer as coisas à face da terra, subtraindo-as, mesmo que visíveis doam, ao abismo onde o demónio as colocou. Ou então findamos com as palavras do autor, no decurso deste salvamento: «O seu primeiro mergulho no rio fora dois anos antes. O peso do seu movimento sobre ele. Interminavelmente, interminavelmente: no sentido em que nada é mais implacável do que a passagem do tempo.»



Publicado no Jornal Nascer do Sol em 18 de Junho de 2022

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