Manuel de Freitas, nosso zelador do cemitério de bardos lusos




Se até o silêncio já cheira a leite azedo, se procuramos iludir-nos com esses venenos que nos deslocam para margens exilares, mas as vibrações azucrinantes e esses estrondos teimosos penetram por toda a parte, ninguém teria de nos convencer de que os dons de um bom número de pregadores da morte provariam hoje ser para nós inestimáveis. Como assinalou Nietzsche faz muito, é indubitável que a terra está cheia de gente supérflua, que a própria vida parece extenuada, tem vindo a degradar-se e a perder substância por conta desses números, desse trânsito excrescente, tornando-se útil que surjam alguns agentes melífluos e capazes de pregar a renúncia à vida, ou de atraí-los para fora desta vida com a promessa da “vida eterna”. Vem isto a propósito da entrevista que deu o nosso eterno noivo da morte, o nosso tanatoperador de serviço, que parece que só não se matou a tempo, e que agora, aos cinquenta, já não está para essas maçadas, porque queria ver se, de tanto ensaiar a cantiguinha dos túmulos, não se via promovido desta vida (que mal vai dando para o gasto) a um dos andares superiores junto dos seus mortos amantíssimos, ainda que lhe coubesse um nível modesto na hierarquia, como um desses moços que servem à mesa no Olimpo, mas que podem pelo menos abandonar-se ao gozo de escutar os mestres enquanto bebem as suas infusões de astros. Nada disto lhe levamos a mal. Pior é quando parece imaginar que a sua progressão na hierarquia dos serventes lá no condomínio celestial está dependente de não vir alguém disputar-lhe a função. Se reclama para si o papel do último poeta do reino, e se se fez um cão de guarda nas traseiras da longa comitiva, não é que não possamos compreender o seu receio, o qual terá despontado por se sentir excluído dos lugares onde a vida se renova, tendo perdido definitivamente também a atenção daqueles que não se deixam confundir com meros leitores. E aqui voltamos a aproveitar-nos de Nietzsche, que notou que quem conheça o que motiva um leitor não fará nada por ele. “Mais um século de leitores e o próprio espírito irá cheirar mal.” Pois esse século passou, e em breve levará com mais outro em cima, e não duvidamos que do espírito só sentimos já o fedor, a decomposição de um cadáver insuportável.

“Odeio quem lê para passar o tempo”, vincava o alemão. E hoje o mais difícil é encontrar quem não o faça, ler como um entretenimento. Ou isso ou para se dar ares. “O facto de toda a gente poder aprender a ler acaba por estragar não apenas a escrita, mas também o pensamento.” Em face disto, não demoraria muito para que ninguém soubesse já o que possa ser a poesia, sendo que aqueles que a escreviam não tinham mais que cinco litros em si para o fazer. E era preciso fervê-lo – o sangue com que escreviam. Era preciso rasgar a vida em pedaços, recompô-la, dar-lhe um embalo e um ritmo produtor em si dos instrumentos capazes de afiná-la, de produzir uma atenção mais profunda. Por isso Artaud vincou que “todos os versos foram escritos para serem primeiro ouvidos, concretizados pelo estentor das vozes, e nem se dá o caso de a sua música os iluminar e poderem então falar com as simples modulações do som, som a som, porque só fora da página impressa ou escrita é que um verso autêntico consegue ganhar sentido, e porque é preciso o espaço do fôlego entre a fuga de todas as palavras”. Ele viu ainda como as palavras fogem da página e se projectam. “Fogem do coração do poeta que lhes impulsiona a força de intraduzível assalto. (...) E lá dizer isto dizem, as sílabas dos versos, dos versos tão duros de gerar (...), mas com a condição de serem de novo e a cada leitura expectoradas. Porque é nessa altura que os seus hieróglifos se fazem claros.” É preciso mais qualquer coisa além desse contentamento em ver o seu nome impresso em letra de forma, entregar-se a essa vaidade de supor que alguém há-de passar os olhos por aquilo que escrevemos. “Quem escreve em sangue e máximas não quer ser lido, mas sim aprendido de cor”, adiantava Nietzsche, para quem era importante produzir uma outra atmosfera: “o ar rarefeito e puro, o perigo próximo e o espírito cheio de uma alegre maldade; assim tudo se combina bem.”

A escrita é um modo de se repetir o mundo, é um exercício para nos libertarmos dos excessos inúteis, dos elementos que nos deixam exaustos, para que se faça o luto de cada uma dessas ilusões mais larvares, e é por isso uma tarefa para ânimos corajosos, trocistas, violentos. Mas tantos acabam por se revelar apenas vaidosos, e extremamente susceptíveis. Ainda que assumam que a vida é difícil de suportar, depois põem-se com todas aquelas delicadezas.

Entre nós tivemos por aí este que vivia embriagado diante dos anúncios em que nos garantia que cada coisa que fazia ou escrevia era pela última vez, como uma despedida. Entreteve-nos com o langoroso ritual da sua autodestruição, mas continuava por aí, e cada novo livro se parecia mais com uma espécie de suicídio mecânico. Com toda aquela sua tanatofilia, durante um tempo iludiu-nos com a suposta veemência daquele seu teatro, mas depois vimos como tudo era apenas uma cena interminável que passava por estender ao infinito a sua dissolução, uma agonia encenada, compondo aquela mitologia que tomávamos por autêntica, mas que se contentava com uma suposta pureza que se atinge pelo excesso de escórias, de calculadas delongas, rarefacções, momices, desígnios de aparência profana. E o facto é que as fábricas de papel dificilmente podem fornecer material suficiente para reproduzir toda esta golfada, o delírio e o balbucio destas almas entregues à euforia das suas formas de luto.

Não surpreende que o enredo tenha podido iludir por um pouco mais de uma década aquela geração que, depois da angústia juvenil com que caiu nos versos, logo se deu conta de que o seu desespero não tinha em si as forças para chegar ao sacrifício, e nem um fulgor vital ou uma ira profunda, mas na verdade estava cativa de uma frieza fundamental, de não-participação, e até de consumo em vez de devoção, participando naquilo que têm por vida cultural no sentido de simular um malditismo embevecido consigo próprio, as condições de semiclandestinidade que não deixa de estar seduzida pelos aspectos do triunfo mediático, entregando-se a proposições aparentemente causticas, mas politicamente esterilizadas, tudo caldeado por uma retórica com uma certa aura sepulcral. Foi possível manter em cena essa mímica peculiar e fazer a sua mística da morte corresponder a um certo enlevo diante de um “destino” de metamorfose histórica. Mas depois, e porque “a luz do futuro não deixa um só instante de nos ferir” (Pasolini), bastou o tempo para desmascará-los.

Depois de terem corporizado uma reacção de repúdio por práticas literárias entregues à vacuidade, e cujos símbolos se referiam apenas a si mesmos, sendo incapazes de desencadear fosse o que fosse, era a vez de também eles erguerem barreiras na tentativa desesperada de impedir que outro impulso viesse a suceder-lhes. Sinal claro disso foi a entrevista que Manuel de Freitas deu há dias a Luís Miguel Queirós, no Público, e isto depois de uma outra dada a uma revista brasileira ("Ouriço", 2021) em que se percebia já o mesmo ressentimento diante dos sinais de que a sua hora tinha passado, e do efeito de transição e de um certo desinteresse pela sua simbologia funerária.

Com as lentes côncavas e aquele seu empenho em fechar o bar, vir por último e apagar a luz, e aquela amargura que estranhamente logo se acomodou a formas de autocomplacência, julgava-se o derradeiro elo das forças vivas do passado, procurando instituir um presente que não abria margem já para as forças criativas do futuro. E com as reformas antecipadas de tantos dos poetas daquela geração, este que ficara com as chaves e o ofício de zelar pelo cemitério de bardos, vem assim obstar a que os mais novos possam encontrar outros caminhos. Manipulando as chaves, julgou que lhe caberia determinar quem seriam os últimos dos últimos, coroando impérios e jardins, e reuniu os seus, como um pequeno senhor feudal de província, enquistando-se no interior de nichos hermeticamente fechados, procurando confundir a vida da poesia com essas vitrinas de museu, onde esperam os leitores, subtraídos à vida universal, incapazes de apreender os ritmos que a marcam, e a urgência do tempo que nos é dado viver. 

No fundo, a sua revela-se uma cultura absurdamente ritualizada para esconder como o que a caracteriza é o vazio. E, nesta última entrevista, não apenas veio reclamar aquele elemento de predestinação, como vem ensaiar uma mitologia que o coloca na linha desses profetas e mártires voluntários do regresso a um ideal de rigor supressivo, superando a inclemência do tempo com o seu próprio critério, e reclamando um inconformismo bestial: “Houve uma altura em que já tinha acumulado tantos [poemas/desabafos] que me pus a lê-los: ao segundo verso, percebia logo que aquilo não valia nada. Fiz uma fogueira com 1200 poemas, debaixo de uma nogueira, com gasolina e uma garrafa de whisky. Foi uma noite triunfal, uma alegria ver aquilo a arder! É muito importante saber-se o que não presta.”

Se assume que tem uma obra compulsiva, talvez não tenha a mesma vontade de reconhecer como há em quase tudo o que escreve uma certa impostura, e um talento para exibir como fresca uma ferida que nunca quis que sarasse e que, de qualquer modo, nem poderia dar-lhe morte. E essa é, no fim, a dimensão perfunctória desta poesia, sendo que a mesma agora se confunde com um enredo acriançado, aquele que serve a uns tipos que se fizeram adultos sem largar dos seus amuos de infância. E é daqui que resulta o fedor da insinceridade entre eles. Se quando o entrevistador lhe dá a oportunidade de enfrentar as reservas da crítica se recusa a fazê-lo, dizendo que só se interessa pelas reacções dos seus amigos, parece nem se dar conta como isso basta para abalar toda a sua intervenção enquanto crítico, pondo em causa o mérito dessa forma de confronto essencial ao discurso poético, preferindo escudar-se, e insistir nos habituais estereótipos heróicos e nas atenções delicadas daqueles que garantirão que qualquer das frivolidades que escreva está sustentada naquele princípio do acto íntimo de desvelamento autobiográfico entre confidentes. E isto raia o patetismo quando, na mesma entrevista, Manuel de Freitas vem falar na falta de discernimento dos poetas contemporâneos: “Acho que hoje há muito pouca autocrítica. A pressa de publicação e reconhecimento está a ser perniciosa para alguns poetas.”

É curioso como no mesmo passo em que se furta a qualquer exame crítico, e joga à defesa, considerando que lhe basta o eco daqueles que elege para o seu círculo íntimo, ainda vem acusar a falência dos critérios dos demais. E não sendo isto algo que o individualiza, mas antes um traço comum à geração de poetas que nos precede, bastaria este sintoma para reconhecer como, quando reclamam um sentido superior de ética, e de autenticidade, na verdade mostram como estão infectados dessa sinceridade repulsiva e incompleta, pois são sinceros em relação apenas a aspectos demasiado parciais e cínicos quanto ao mundo que lhes é alheio, mas depois estão inibidos, prontos a castrarem-se e deixarem de lado toda a integridade quando o assunto é o edifício da sua própria quimera.

Se este poeta poderá ser levado em conta até certo ponto como um desses pregadores da morte, a falta de eficácia dos seus juízos prova-se por ser fácil perceber como não há neles nada de realmente perturbador nem profundo, pois se exibem prazeres de autodilaceração, não demoramos muito a compreender como ele e outros da mesma estirpe ainda nem sequer se tornaram seres humanos. Para que os seus versos merecessem ser levados a sério teríamos de lhes exigir que, em lugar de pregar a renúncia à vida, se fossem daqui de uma vez. Mas é isso o que não estão em condições de fazer. Exibem-se como misantropos, mas na verdade não passam desses tísicos da alma de que nos fala Nietzsche: “mal nasceram, começam logo a morrer e anseiam por doutrinas de cansaço e de renúncia”. São capazes de ver o pior no mundo, nos outros, mas é isso mesmo o que os expõe como existências redundantes e mesquinhas: “Cruzam-se com um doente ou um velho ou um cadáver; e dizem logo: ‘Está refutada a vida!’”

Pois é este que conseguiu publicar dezenas de livros recolhendo essas refutações em tom de alarme e desespero, quem vem reunir agora tudo na sua própria editora em três volumes, e ainda sinaliza a sua crença no valor salvífico das mais de mil páginas que escaparam ao triunfante desbaste, reconhecendo como entretanto se reconciliou com a vida, não pensando já no suicídio, e entendendo que os poemas o salvaram, configurando um “suicídio diferido”. Esta é boa, e dá para exclamar com Nietzsche: “Livremo-nos de acordar estes mortos e de danificar estes caixões vivos!”

No fim de contas, se eles próprios admitem que, afinal, lhes faltou o nível de integridade que se espera de quem realmente está apostado em refutar a vida, e o levam até às últimas consequências em vez de se limitarem a servir-nos mais uma dessas fitas típicas de um mimalho imbecil, podemos perceber que nos oferecem como obra poética algo que foi inteiramente refutado, não só os versos como eles mesmos, e os seus olhos, que apenas viram afinal uma face da existência. No fundo, escapou-lhes tudo o que importava, e só ficou esse resto a que chamamos literatura. Mas nem assim se retiram. Agarram-se ainda aos mesmos velhos e esgarçados tropos, arrastam por um cordel o triste tractor desbotado da infância, falam muito de valores e princípios éticos. Mas depois há algo de reles neste aconchego deles para com o destino, nesta ‘decência’, nesta ‘bondade’, nesta ‘virtude’ muito específica que é a deles. 

Vivem virados para os seus rituais de fedelhos, ungindo-se no canto mais isolado da língua, num recreio protegido e que não podia estar mais longe desse exercício de funambulismo numa corda sobre algum abismo. Não há aqui qualquer travessia, nem um perigoso estar-a-caminho. Apenas um deleite miserando. Como massa sensaborona, as suas almas e estes livros ou as opiniões que exprimem tresandam a um formalismo sem saída, servindo-se de analogias com a música, defendendo-se com a deslumbrante monotonia de Bach, passando ao lado do facto de os seus versos muito dificilmente sobreviverem a partir do momento em que os lemos alto.

E se os poemas se defendem nesse efeito barroco, por outro lado as convicções em que querem sustentá-los resvalam naquela desleixada suavidade de uma consciência pobre, agarrando-se a símbolos vazios.

Esta poesia com toda a sua retórica, que numa primeira abordagem nos parece sustentada num dispositivo de experiências e referências bem calibradas, cativando os leitores menos experimentados com um nível de requinte que evoca uma certa tradição aurática, aos poucos deixa-se abater e revela como vive de uma grande misturada, entre exageros e mistificações, fazendo alusão sempre a um fundo que permanece inefável, secreto, incomunicável, inapreensível. E a sua é uma existência de seres tão frágeis quanto presunçosos, impura, fraca, só meio viva, incompleta na sua verdadeira expressão. Mas é este poeta que se refutou a si mesmo que, em lugar de depor a sua coroa de latão, vem ainda subir àquele trono de pobres noções e de angústias teatrais para nos vir dizer que não espera grande coisa dos poetas mais novos.

Talvez os nossos passos lhe soem como um desaforo uma vez que estão para lá dos territórios aos quais confinou a sua mesquinha noção do real. Não estaríamos nós à espera que ele pudesse sentir um estremeção se o raio o lambesse com a língua com a qual ele se limitava a lamber uma e outra vez as feridas que ele mesmo abria por conveniência, esbanjando uma agonia que nos deixou vacinados contra essa imitação que exige do poeta que se transforme num actor representando-se a si mesmo, exibindo-se em palco como o último ser humano, esse que acha tudo desprezível, e só não consegue desprezar-se a si mesmo. Nessa sua confrangedora imposição, torna tudo pequeno, e oferece como dádivas aos outros o próprio sinal de desespero pela condição comum dos homens, pela sua força de superação através de actos de invenção.

“É preciso ter ainda caos dentro de si para poder parir uma estrela dançante”, lembrava Nietzsche. E Herberto ecoava-o exigindo essa evolução superior, despedindo-se, dizendo aos tantos doutores de um reino só, que sim, que se deixassem estar, que ficassem onde estão, todos contentes, menos ele, e os outros todos que nos entusiasmam a nós, que ficassem com as suas sinecuras, e que não perderia mais tempo com eles, “estou com pressa,/ alguém lá fora dança na floresta devorada,/ alguém primeiro escuta depois canta através da floresta devorada,/ desculpe dr. mas já desapareci como quem se abisma/ num espaço de hélio e labaredas,/ eu próprio atravesso o incêndio imitando uma floresta,/ fui-me embora pela floresta infravermelha fora,/ não estou para essas merdas floresta infravermelha fora”.

Ora, Manuel de Freitas está do lado dos que não sentem em si esses impulsos, ele mesmo é já parte da paisagem desolada. “Ai de nós! Chegará o tempo em que o ser humano já não atingirá a seta do seu desejo para além do ser humano, e em que a corda do seu arco terá desaprendido o vibrar!”, profetizou Nietzsche. E aí os temos, poetas que vêm assumir que nunca foram tomados dessa “tusa surreal”, que sempre só “fodem murcho”.

“Ai de nós! Chegará o tempo em que o ser humano já não parirá estrelas.” E ei-lo cheio do seu orgulho diante de um mundo em que ficando as coisas tal como estão a única coisa digna a fazer seria virar-lhe costas de vez. Mas este pobre coitado confessa que houve mesmo um tempo “em que o único pré-remorso para o suicídio era não poder voltar a ouvir a Paixão Segundo Mateus de Bach”. E se um dia dermos por nós condenados a conviver apenas com isto enquanto matéria de composição do nosso tempo, pois chegámos realmente ao fim da linha, sabendo que estamos diante de uma estirpe inerradicável, como a pulga terrestre; o último ser humano, que é aquele que vive mais tempo.

A vida pode realmente estar muito mal, mas não chegámos a este ponto. Entre todas as coisas à face da terra, sem mesmo ser preciso chegar aos poetas, há muitos homens cuja existência, por mais dolorosa e condoída que seja, não chegou ainda ao ponto de escolher passar a última noite na terra agarrado a alguma composição funesta. Diante destas existências sinistras, sabemos como cabe ao poeta ser um bufão, e vir rir-se destes pategos que mesmo na hora da morte não largam daquele registo de sensíveis finórios, e em vez da alegre maldade, das exuberâncias e desse pão que na última das noites poderíamos bem escolher repartir com o diabo, encontram maneira ainda de se irem deste mundo com aquele ar de presunçosos, refugiando-se do pavor em concertos de música clássica.

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