O detalhismo, o horror e a paciência do leitor




Deus está nos detalhes, alguém disse, e por vezes desejamos que nunca o tivesse feito. Para quem não se importe com o realismo endémico por terras dos anglofalantes, e até admire, como é caso deste que escreve, as sinuosidades das fintas de Bellow, Foster Wallace ou McCarthy, dadas na dança de cumprirem a receita escapando a ela, talvez a definição de romance possa passar por expressões como “a acumulação sábia detalhes " ou " uma declinação engenhosa de pormenores” (definições que inventámos agora, mas nos parecem adequadas). É verdade que as grandes construções impressionam, mesmo que delas não se tire senão uma espécie de vertigem, que vem tanto da distância ela mesma como do cansaço vencido em a termos percorrido. Mas o paroxismo destas formas é perigoso, como é perigoso transportarmos objectos avulso por uma rampa sem nos atermos ao seu peso ou à multiplicidade das suas formas: um descuido pequeno e achamo-nos de novo ao fundo da inclinação, dessa vez misturados ao gume daquilo que tentávamos trazer em separado à atenção do leitor.
Da mesma forma, a repetição não é um jogo fácil. Aquilo que em Fosse funciona de facto como uma sinfonia, com a repetição de motivos servindo para desnovelá-los, como se mostrassem a cada volta uma face nova, ou na épica grega transforma uma necessidade mnemotécnica num eco maravilhoso (que belas as auroras, sempre de róseos dedos) já no último Lobo Antunes soa aos derradeiros esforços de um náufrago para se agarrar à tábua da linguagem, inventando a complexidade como uma cortina para esconder as falhas. Aquilo que bem aplicado pode passar por mecanismo lúdico ou argumentativo, arrisca-se, falhando o senso, a terminar em simples urticária estilística. Assim com este American Psycho, de Bret Easton Ellis, que toda a gente leu à nascença (dele, livro) porque saiu com grande estrondo, e de que eu desdenhei, apesar de ou por isso mesmo, até notícias mais recentes da vida (do autor) o terem ressuscitado (ao livro) nos holofotes meio tortos da minha atenção.

A história é conhecida e por isso o leitor vai deixar que a salte em poucos passos: um yuppie, daqueles que só a década de 80 americana inventaria, descreve-nos os paroxismos solipsistas do seu tédio existencial, feito de uma rotina de assassinatos bárbaros, canibalismo, consumo desenfreado de drogas e objectos de marca, frequência de restaurantes caros e aluguer de filmes anódinos ou pornográficos nos saudosos clubes de vídeo do há muito enterrado império do VHS. A uma cena de sexo detalhadamente descrita segue-se, o mais das vezes, um esquartejar de partes humanas digno de fazer corar o mais endurecido talhante. O emparelhamento é óbvio, como tantos outros truques neste livro (e esse é o problema): Eros e Thanatos, por esta ordem precisa, um casamento clássico e tudo menos imprevisto, num tempo amedrontado ainda pelo fantasma da SIDA. Mas a obstinada condução do leitor ao tédio do assassinato, repetidamente impune, nada é comparada com o desconforto gástrico, o empanturramento kitsch provocado por:
– extensos ensaios sobre música rock de estética duvidosa, capítulos em geral sucedendo os de massacres de prostitutas ou sem-abrigo seduzidos por uma confiança exagerada no capitalismo
– descrições não menos que queirosianas da indumentária de cada personagem, com respectivo relatório versando marcas, preços e o melhor modo de os combinar, com a agravante de a década de 1980 se arriscar a ser, durante muitos séculos, o pior exemplo da história no que se refere à nobre arte de vestir.

Sim, a gente sabe que a intenção é horrorizar o leitor com os males do capitalismo desenfreado e ao mesmo tempo anestesiá-lo com isso, como acontece com o protagonista. É um malabarismo originado no princípio de que a boa narrativa o será tanto quanto possa provocar em quem a lê precisamente aquilo que é descrito. Mecanismo insano, este, se visto de perto, porque a intenção de quem lê nunca é, em honestidade, levar o proverbial murro no estômago, ou não haveria abdómen que aguentasse metade da estante caseira – ver o mundo, repare-se, não é bem o mesmo que experimentá-lo, e alguns talvez pudessem argumentar que é precisamente nesse intervalo que vive a literatura. Na lógica desta obra, contudo, ver dez pessoas usar o mesmo fato Ermenegildo Zegna equivale ao tédio de encontrar dez cabeças humanas no frigorífico do psicopata. De boas intenções está o inferno cheio e é aqui que nasce o problema deste tipo de realismos, de que American Psycho é só um exemplo mais ou menos extremado. Tal como não é por repetirmos mais alto ou mais vezes a mesma frase que nos faremos entender por quem não sabe a nossa língua, ou por reiterarmos uma piada que a faremos mais conforme ao humor de quem nos ouve, também não é por enchermos a mesma narrativa com os mesmos detalhes que a tornamos mais forte. Até a hipérbole tem limites. Mesmo que o realismo americano tenha vivido muito bem com a eternidade de alguns sítios (Nova Iorque, visitada pela primeira vez, continuar a resistir ao excesso de representação cultural que a precede, iluminada com a extravagância irreal de uma Disneylândia, ao mesmo tempo que permanece, por assim dizer, de carne e osso), mesmo que a utilização de pormenores narrativos continue a funcionar em países civilizados, com a normalidade quem não pretende inventar a roda a cada passo, nada justifica que multipliquemos o truque até se ele se tornar absolutamente vazio, como faz Ellis, numa espécie de homenagem, acredito que involuntária, aos exotismos de Perec, ao seu vício por listas e pela enunciação total. Transformar cada personagem numa espécie de loja ambulante onde se expõem as marcas, todas iguais afinal, com que se paramentarão para participarem em mais uma noite carburada a cocaína, funciona como truque uma ou duas vezes. Descrever a ansiedade do psicopata em devolver o último vídeo ao clube antes da data-limite, contrastando-a com a absoluta calma de quem ocupa o domingo a dobar intestinos alheios, como se de fios costureiros se tratasse, é equilibrismo para duas páginas. A partir daí o detalhismo actua apenas como um modo de lesar quem lê, ofendê-lo com as doenças do protagonista, esgotar-lhe a paciência, quebrando de uma vez por todas o sagrado selo que une o leitor à ficção, a suspensão da descrença como a queria Coleridge, e todo o escrevente almeja.

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