João Miguel Fernandes Jorge. “Todo o tempo pode ser um tempo perdido”

 Texto publicado originalmente na revista Ler / Inverno de 2023

 



Como uma senha ou um segredo entre os iniciados, a obra poética de João Miguel Fernandes Jorge assume um particular fascínio junto dos seus leitores, para quem falar sobre ela é já um modo de tocar num assunto bastante pessoal.

 

No confronto fundamental que nos exige a obra de qualquer poeta significativo, e sendo o percurso poético e literário de João Miguel Fernandes Jorge dos mais raros e aliciantes das últimas largas décadas, é possível que um dia venha a mostrar-se necessário voltar a ele, ir ao seu encontro extirpando o excessivo peso de uma relação mediada pelo seu companheiro, o crítico e poeta Joaquim Manuel Magalhães, que foi quem, desde muito cedo, tomou sobre si a responsabilidade de exaltar a singularidade desta obra. E este esforço mostra-se necessário a partir do momento em que se queira entender em que medida essa relação guiada terá levado a que, na recepção desta poesia, se tenha perdido uma certa audácia da parte das leituras que dela se fizeram, sentindo-se estas desautorizadas ou intimidadas pela tutela impositiva do parceiro do poeta, que nunca reconheceu o quanto a excessiva proximidade lhe exigia um certo pudor. Pelo contrário, cercou sempre JMFJ de atenções, muitas vezes através de textos que extravasam aquilo que é possível descortinar nos versos ou na sua restante produção, partilhando considerações que sobrecarregam o contexto em que os próprios poemas surgiram, entrando muitas vezes num campo confessional que não interessa muito ao leitor que não queira deter-se nas circunstâncias particulares ou íntimas, e que até mancham esse lugar de incerteza e mistério a partir do qual um certo impulso alcança uma formulação linguística mais acutilante.

Na órbita que foi desenhando ao redor desta obra, através de intervenções mais afectivas do que críticas, JMM permitiu-se exercer uma indevida influência, que se nuns casos pode ter enriquecido a leitura, noutros acabou por mostrar-se invasiva ou, pelo menos, distractiva. O leitor bem pode ignorar tudo isso, mas do ponto de vista da crítica, é manifesto que JMFJ ficou cativo dessa protecção sufocante. De resto, talvez a leitura mais cativante que nos foi dada ler sobre a sua obra não tenha vindo do amigo, mas de António Cabrita, num prefácio a uma antologia de poesia hispano-americana (“As Causas Perdidas”, ed. Maldoror), em que declina a tarefa de nos situar em face dos textos e autores por si escolhidos e traduzidos, ou sequer ao propósito daquela edição, para se lançar numa apaixonada e exaltante manifestação de apreço pela obra do seu contemporâneo. Cabe ainda relevar como os cuidados de que JMM cercou o seu parceiro se exerceram de diversos modos desde o período da sua estreia, no início da década de 1970, entre prefácios a artigos regulares, até ao exercício antológico, em que reincidiu em 2019, com “Antologia dos Poemas”, publicado na Relógio D’Água, isto depois de uma anterior recolha feita em 1995, que saiu na editorial Presença. Tudo isto resulta num excesso que, por outro lado, quase confisca a obra de JMFJ, tendo este sempre mantido uma postura bastante discreta, senão mesmo esquiva no que toca a um diálogo à volta da sua obra.

JMM impôs-se, assim, como um vigilante de museu demasiado cioso das peças em exposição ou até das próprias paredes e divisões do edifício, exercendo um controlo quase maníaco e uma irritante pressão sobre os visitantes. E esta devoção sitiante é tanto mais perniciosa quanto é o próprio crítico-amante quem, logo no texto que dedica ao livro de estreia de JMFJ, começa por dizer que “todo o ruído de voz escurece a frágil fala que é o poema”. Depois acrescenta que “será sempre uma tarefa ambígua a do que fala sobre a fala que é o poema, pois que ao erguer-se tem que erguer consigo o que destrói: a presença pura do poema”. Mais à frente, no mesmo texto, vemo-lo manobrar a questão de forma a justificar a sua vigilância, notando que “literatura é a obra mais o ler a obra”, e que “criação e leitura têm que se juntar para que seja literária a obra”. Com isto dá a entender que não pôde deixar de assumir a necessidade de dar resposta a uma obra de tal modo singular, e a sua intervenção será sempre no sentido de provar que ocupa aposição de um intérprete privilegiado face a esse tão hábil e sedutor percurso que foi acompanhando por cima do ombro do amigo. Mas se a obra de JMFJ exerce um invulgar fascínio, obriga a uma aproximação cautelosa, desde logo pela forma oblíqua como se relaciona com um universo tão substantivo, dando-nos a sensação de que o autor é um desses seres que terá nascido num mundo que, física e metafisicamente, não foi feito para ele. O poeta vai registando a sua encantadora mágoa sempre ao arrepio da marcha do progresso, e saboreando até o apelo de um mundo morto, aparecendo-nos como um guardião de uma ordem em que a agonia confere às coisas e aos seres o seu mais pleno e radiante soluço.

Toda esta obra surge-nos como algo que irrompe imprevistamente, uma confissão quase póstuma, desamparada, um aparte magnífico. A própria percepção daquilo que tem ao seu redor leva a que se organize no testemunho daquilo que sobrou, e assim chegamos a uma margem do que quase já não se diz, ou apenas encontra o seu lugar nesse “país de restos de palavras”. O mais doloroso parece ser a sensação de estarmos diante daquilo que ficou depois de uma retirada. E como quem procurasse reatar um sentido que se perdeu, vemo-lo “mudar incessantemente de direcção, ir como que ao acaso e para fugir a qualquer objectivo, num movimento de inquietação que se transforma em distracção feliz”, recorrendo a uma formulação de Blanchot. Damos por ele recolhendo vestígios não se sabe de que trôpega fantasia, fazendo do teatro humano e do próprio tempo, já sem rumo, uma espécie de jogo, uma ocupação ociosa. Tudo fica doce e extenso, num rumorejar deambulante, dedicando-se à subtileza como se esta em si mesma fosse um modo de existência.

O poeta vai nessa liberdade que sabe aproveitar o balanço acidental das coisas, experimentando os sentidos num registo desprovido de todo o interesse imediato e de toda a utilidade, essencialmente superficial e, no entanto, capaz de, nesse movimento de superfície, absorver todo o ser.

Na breve nota prefacial deste volume, JMM refere-se ao “método que se tornou preponderante na relação dos versos do autor com a miríade de quadros, obras de arte, obras musicais, lugares históricos, elementos difusamente biográficos”, dizendo-nos que este nunca é meramente descritivo ou assertivo, mas que se vale deles num “deflagrar de presenças e de fugas que constroem uma obra autónoma, o poema, em ligação oblíqua com o objecto correlacionado, às vezes quase se esquecendo dele ou utilizando-o num mínimo pormenor”. Estamos para lá da adesão ou até da mera citação, uma vez que o peso destas referências poderia ser um impedimento de possuir a sua própria vida, e, no fundo, isto diz-nos, que mesmo nesses sinais de correspondência e afeição, os versos não dependem de mais nada senão de si mesmos, mantendo, contudo, aquela infinita disposição de uma deriva que se sabe condenada a uma impossibilidade de se satisfazer. O seu destino passa assim por abandonar-se ao tal jogo das aparências e das sombras, detalhes que se libertam do seu significado, que atendem à inquietação do poeta, e que se deixam colher como impressões vagabundas. É a partir desta capacidade poética que passa por criar separando e aproximando, num saber espantoso do que fazem as distâncias, que nos sentimos tomados por uma erótica, a qual se define pela sua agilidade e pela plenitude da sua abertura às sugestões de tudo aquilo com que se cruza na sua deriva.

Estamos, por isso, diante de uma poesia que regista uma infinidade de movimentos, cuja sedução se faz de encadeamentos invulgares, novas formas de relação entre os objectos e o sentido, e, sendo assim, tudo parece simultaneamente condenado a um carácter periférico, quando o que realmente importa é manter esse espírito de gozo e descoberta, abandonar-se a uma sucessão melodiosa, bailar entre a flutuação que irrompe a partir da realidade concreta.

Há uma marca de intimidade no modo como as coisas pedem atenção a esta voz, e se JMM assinala esses núcleos intensos de relacionamento com a História, a Geografia, a Arqueologia, além da dimensão biográfica directa, o leitor sente-se movido por um sentido do fim, de um último olhar, sente-se movido pela mortalidade em si mesma, e por esse desejo de honrar e despedir-se de cada lugar e das coisas que o prenderam… “era assim que o texto entrava em cena uma/ espécie de disponibilidade instável corrupta frágil/ mortal.”

Estamos nesta poesia como quem se entrega à obscuridade, a um desequilíbrio amoroso. “A pequena tentativa: a/ morte, o sonho, a vida. (…) Hoje os poderes estranhos são/ os nossos desejos. Não há ciência/ do mar porque o mar é/ um ritmo. Como representá-lo?”

E há um modo muito particular de representar o gesto da dicção e a articulação sob a forma de voz, sendo que por vezes o que se diz nos versos parece embrulhado num suspiro. A poesia torna-se um registo pouco firme, abrindo-se a uma incerteza entre os géneros, o lírico e o narrativo, desde logo, mas também a notação diarística ou o desabafo, uma multiplicidade de tons que deixa aos signos uma liberdade rara. Fica-nos algo como um sagrado torpor, uma consciência atravessada por sensações que não nos são próprias. Ao mesmo tempo, são poemas que estimulam um exercício de leitura selvagem, de apropriação desses materiais que irradiam entre juízos sobre a língua, a filosofia, o tempo e a história, a antiguidade ou a geografia. JMFJ é um amante volúvel que nos diz que “toda a unidade será sempre uma/ ausência e um excesso”. E tantas vezes, em lugar de impor um saber, prossegue por meio de interrogações: “Sobre os lábios do homem a/ única duração da vida é a razão/ de um silêncio ou de uma rosa?”

Este é um discurso que consegue dissuadir-nos de a ele aderirmos simplesmente, dissuadindo-nos de ler os versos como qualquer outro discurso dominado pela lógica ou pela razão. A forma como a sintaxe e a prosódia são trabalhadas, carregando os versos de cortes e efeitos suspensivos, encaminha-nos para bem longe da discursividade quotidiana, impedindo um efeito de reconhecimento imediato. O mundo que é reflectido por estes versos sente com os dedos a estranheza e a instabilidade das suas feições. Nada é demasiado certo, nenhuma composição se fica por um ânimo regular: “sinto que é de matéria breve que/ tenho composto todos os meus objectos/ todos ordenados à vida e sem aquela/ alegria que devemos encontrar/ no que tentamos reduzir ao tempo”.

Na nota que encerrava o primeiro dos seis volumes em que JMFJ reuniu na Editorial Presença os seus livros iniciais, deixava-nos esta definição: “Imagens, fantasmas são o que são estes poemas.” É uma arte de perder-se, de sentir como em cada coisa neste mundo podemos encontrar um certo aspecto único do nosso rosto, algo que nos distingue, imagens que passam, e com a sua passagem tornam sensível a nossa própria duração. “Nada há mais belo que/ a deterioração do corpo, do seus ângulos./ Uma cerimónia fúnebre? Por/ certo um pôr do sol.”

Também a irregularidade nas cesuras dos versos aponta para esse corte que se deixa aperceber como um ruir da própria fala. Mas nessa zona fronteiriça de múltiplos contrabandos, onde é incerto em que medida a vida às tantas não corrompe a literatura e se lhe impõe, aquilo que estes poemas nunca nos recusam é uma “pequena forma de prazer”. Por mais modesto que seja, esse acaba por ser o verdadeiro compromisso desta escrita, que consegue sempre dizer-nos respeito de uma forma bastante íntima. De tal modo que falar dos poemas de JMFJ se torna muito facilmente um assunto pessoal para cada um dos seus leitores, na medida em que algo de profundo e revelador se ligou a essa experiência.

Os poemas que nos ficam são nossos na medida em que os recordamos como se estes ligassem em nós coisas decisivas, corpos que se fizeram distantes, tempos e lugares perdidos, aos quais não conseguimos escapar. E se a suspeita de que há algo de inumano no canto prende-se à sua persistência, estes versos deixam claro como, na sua imensa força contida, se denuncia essa ânsia de superar o tempo de uma vida. “«amei-te rapaz» e o que hei-de fazer/ por esse tempo presente/ naquele quarto de hotel.// Era quase uma forma de idade/ média/ tanto no texto como na medida// as repetições./ Cresce, erva, cresce. Repete a/ mínima variação do teu crescer// sob o corpo dos corpos ou sobre ele/ cresce erva// do corpo as sombras/ e os lugares./ Aluz// naquele quarto de hotel/ em todos os quartos de hotel onde amei/ amei-te rapaz// mais a ti/ que todos os outros./ E,/ se através das ervas podia ver o mar/ o verde sobre o tão escuro/ era o teu corpo// «amei-te rapaz»/ pelo dia/ pelo distante dia a noite inteira à nossa volta.”

A vida parece curta para uma intensidade que nunca se dissolveu, e que corre o risco de se transformar em ressentimento, ao ser contrariada pelos dias que nos restam, como se uivasse de não ser mais possível reencontrar essas sensações que mais nos disseram quem somos. Então, o que fazer? Talvez a poesia seja um modo de impedir o ressentimento de tomar conta de tudo o que se perdeu, esse “pequeno jogo entre acaso e destino, entre matéria e memória”. É a inteligência de certas dores que se enraízam mais fundo em nós, levando a que um dia nos sintamos a sobrevoar o que restou, “como as aves resignados à solidão”.

No esforço para dilucidar esse domínio e mestria da dicção poética, esse que torna JMFJ um caso não tão destacado entre os poetas portugueses, como alguém que soube isolar-se sem deixar de se relacionar intimamente e com uma destreza espantosa com a nossa tradição lírica, António Cabrita assinala a sua inigualável técnica de montagem que lhe permite instaurar “continuamente nexos lógicos imprevisíveis que salvam os objectos da sua (efémera) significação (inércia) temporal”. Assim, o “poeta sem apelidos” foi organizando “um fluxo que desengancha os eventos da sua cronologia para os ‘resgatar’ numa nova sincronicidade”. Cabrita destaca ainda a riqueza do tempo verbal dos seus poemas, que tenderia a aproximar-se da coloquialidade. A verdade é que esta proximidade acaba por ser deceptiva, porque, como é fácil perceber, ninguém fala assim, ninguém chega a proferir frases em jeito de murmúrio que parecem fazer suspender o próprio tempo. E o facto é que as cenas, episódios ou situações com as quais nos deparamos nestes poemas estão sempre feridas de uma gravidade que só a memória é capaz de impor, através dessas múltiplas passagens (“na poesia, diz-nos JMFJ, o tempo é uma duração interior, vencido, memoriado”), permitindo explorar esse efeito de “ambivalência” que Cabrita também assinala.

O poema acaba por registar aquele tumulto que resiste a ser soterrado: “tudo é estranho para o que vive. Sob a noite/ encerro o segredo destes ritos/ desfaz-se este meu corpo paisagem/ e alimento de um brilho antigo/ cabelo que conheci. Digo nada há que valha esta hora/ pouco a pouco renuncio ao sol (…) É preciso esperar tanto. Esta morte faz-se lenta/ mente não tenho fome nem sede nem desejo/ apenas por outro caminho regresso.”

Depois de Ezra Pound, mais ninguém foi tão audaz na forma de recolher materiais tão diversos, provocando nos sentidos constantes sobressaltos, e o que é sumptuoso em JMFJ é a forma como abdica de toda a ênfase, rejeita a veemência arrebatada e o tal desregramento dos sentidos, preferindo ater-se a um modo comum, à própria fragilidade do processo poético, preocupando-se, antes de mais, em saber dos processos físicos.

Em lugar da radicalidade expressiva dessas imagens que funcionam como detonadores, prefere não sobrecarregar a sensibilidade do leitor, mas afiná-la. Proceder da forma mais natural. Por isso defende que “a poesia é um saber vivo, quase biológico, uma maturação feliz, um acontecer devido ao desenvolvimento do corpo e do espírito”. A receita num mundo excessivo, dominado pelo ruído, nunca poderá passar por mais estimulantes ou excitantes, mas antes por uma disciplina ligada à privação, à distância face a tudo o que nos assedia, e a uma possibilidade de abandono, e de regressar a si, sim, mas por outro caminho.

Comentários

  1. Um dos seus melhores textos sobre um poeta magnífico! Obrigada por nos levar de volta ao poema!

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