Elisabete Marques. Os dedos em redor do lume




Nas passagens de Paris, Benjamin coloca da seguinte forma o paradigma da habitação: "O mais difícil na reflexão sobre a casa: o facto de nela, por um lado, ter de se reconhecer o mais antigo, talvez eterno, a imagem da permanência do ser humano no ventre materno; (...) A forma primordial de toda a habitação é a da existência, não na casa, mas no casulo." Existir no casulo, como num estojo, onde vamos deixando as nossas marcas pelas paredes. Entramos num espaço onde julgamos estar protegidos do furor da produção, onde poderíamos ser nós mesmos, no inocente sonho da coincidência consigo próprio. Benjamin fala na ideia de estojo, de uma caixa de veludo onde o corpo se encontraria em repouso como um compasso. Esta seria a ideia que guiaria a imaginação burguesa do séc. XIX. Assim se persuadiam a viver apenas preocupados com a sua realidade, sem terem consciência do social. Um imaginário que funciona como um alibi, um espaço forrado de ilusões, numa ficção de interioridade que os protegia da violência que exerciam.

O resumo absoluto da habitação para o burguês é a alcofa. Nessa alcofa, no entanto, depois de passar o dia cego às mercadorias que forram a sua concha com ecos do exterior, ao estalar da terra que trouxe na sola dos sapatos, é o pesadelo que lhe mostra a sua essência porosa, impossível de se fechar. Nem a casa, nem o seu modelo ideal, o ventre materno, existiram como protecção do exterior. No ventre éramos já exterioridade, atravessados por todos os tremores, emoções e palavras que percorriam o corpo materno, cunhados pelo seu desejo. Ao sair do ventre continuamos votados à exterioridade, ao mundo que habitamos como estrangeiros. A casa veste-nos, protege-nos, mas, por isso mesmo, expõe-nos ao que não podia aparecer quando estamos desprotegidos, abre-nos a uma exposição ainda mais fundamental.

"Estranhos em casa" é um livro onde Elisabete Marques, afronta essa exposição, com o vagar necessário de quem penetra círculo a círculo numa "interioridade" onde as coisas lhe respondem e ela as acolhe, porque "não há amor fecundo que não obrigue/ ao gesto inicial, ao terror da atenção."

A atenção é um terror, porque é avançar nu dentro de uma floresta, desconhecendo que animal me virá cheirar, "a solidão é plástica,/ a deslocação quente intuída no mato." Ou ainda porque, ao ficar quieto, sei que as águas vão subir, "Deixar que as correntes subam e desçam,/ a confusão dos reinos no meu pequeno corpo/ quieto." Submeter-me a ouvir essa "ligeira vibração do espaço" que a presença dos mortos dá a um lugar.

O ouvido é a vulnerabilidade mesma, esse poço sempre aberto, numa receptividade extrema que se protege apenas com o desvio da atenção. Fugimos das vozes que nos assolam na rua, dos outros, de Deus, caímos sob o olhar das coisas. Temos um tecto para que o céu não nos devore a cabeça, mas, ao chegar a casa, "um abrigo feito do mais obscuro anseio" (Rilke), o frenesim do silêncio começa a crepitar, porque as sereias não cantam apenas nos rochedos, mas infiltram-se no coração dos homens, e embebem tudo o que constroem.

Nada nos prepara para o confronto com o vazio, aliás, tudo conspira contra esse encontro. No entanto, as suas faces perscrutam-nos a alma, prontas a devorar-nos. A escuta é a única forma de reconhecer esse monstro, de o afrontar, de descobrir que "os objectos crescem e decrescem por dentro/ das estações."

É pela procura de uma voz que escute, uma voz que responda à exigência das sombras que lhe "trepam pelas tíbias", que Elisabete constrói um diálogo com a alteridade. "Sentada só para escutar (..) Assim sou impregnada de tudo." Dar ouvidos a tão aparente inocência é aventurar-se no mais dissimulado dos perigos, "Uma orelha pode quebrar um coração humano/ Tão veloz como uma lança,/ Desejávamos que a orelha não tivesse um coração/ Tão perigosamente perto"(Dickinson). Mas "Talvez, ouvindo, importe apenas ascender à uva,/ lavar as mãos, engolir a côdea do mundo."

Ao manter este estado de atenção, "não crescer para cima, erecta,/ nem me dissolver no chão", não cair na soberba, nem na distracção. Se, num instante, segurar a difícil estatura, como quem se equilibra junto a um penhasco, "mexe-se tudo como quando jogava ao pião," tudo se transfigura, "não sabia, então, que a música estava/ desde sempre aí, nos veios./ Agora, não posso esquecer a crepitação.// Escuto todos os cordões deste som tímido,/ entre o salto da rã e os galhos em que a noite se embrenha.// Escuto-os antes de adormecer;/ escuto-os quando toco o dia;/ escuto-os quando demoro no pensamento;/ escuto-os como beijo/ a espuma vagarosa ou uma pedra.”

Como nos lembra Cioran:"a música dura apenas o tempo que dura a audição.”

Elisabete tem uma preocupação fundamental com a exactidão da escuta. Ouvir as coisas, os mortos, as vozes, sem aplanar a sua diferença num discurso que fosse apenas o do si mesma: "tenho a terrível impressão de ter ouvido/ uma voz. Vinda de mim, não era minha."

A condição essencial da escuta é reconhecer o inesperado. O livro tem a sobriedade de um templo, aberto ao que o rodeia, sem que se consiga separar com firmeza o que está dentro ou fora. Entramos e saímos, pelos lugares onde os mortos se revelam, como se de um pórtico se tratasse, a soleira e o jardim. Os mortos são uma moldura que sustenta e atravessa a casa. "Parecem estiolar/ como um lírio branco à entrada da noite./ Mas metem-se na solidão das casas,/(...) Deles emana fósforo,/ uma ligeira vibração no espaço."

Do fósforo e do silêncio já Dickinson, para quem a casa foi lugar da mais extrema exterioridade, nos falou: "Os Zeros—ensinam-nos—fósforo—/ Aprendemos a gostar do Fogo/ A brincar aos Glaciares—quando rapaz—/ E a fagulha—adivinhada—pela força/ Dos contrários— para equilibrar o estranho—/ Se branco—vermelho—tem de ser!/ Paralisia—o nosso manual—tolo—/Para a Vitalidade!"

Depois da soleira, com a vertigem do longínquo encostado, as portas. As portas são o mais concreto, o que sustenta a passagem dos fantasmas como um copo segura um líquido, o limiar manifesto. Ao contrário do senso-comum, não são as paredes o que nos protege, mas a possibilidade de passar de um espaço para o outro.

Para um ser que é mutação, a passagem é o concreto do possível, a marca espacial da metamorfose, poder sair e entrar na constelação oculta do presente.

A casa vive do labor amoroso, do gesto repetido, da responsabilidade de quem "Pratica diariamente as suas graças.”

O poema "Diário" é um breviário da sua vocação amante, na entrega insistente ao que desaparece, do conhecimento profundo, como dizia Simone Weil, que a atenção é a forma mais rara de generosidade. 

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