Ainda sobre a ditadura do tema: notas sobre História de Roma, de Joana Bértholo, e Sol Negro seguido de Outro Éden, de Frederico Neves Parreira




    Imaginamos que já esteja feita a arqueologia de uma viagem específica, construída por linguistas, historiadores e teóricos da literatura. Tudo faremos para não a conhecer melhor: é natural que estudá-la de perto pudesse tirar-lhe o brilho, além de roubar o tempo que houvesse para disfrutar face a face do que nos interessa. Desconfiamos que imaginá-la, a essa viagem, mesmo que inventando um pouco, seja mais útil à ilustração pretendida que um conhecimento muito próximo da verdade. Falamos de um trajecto que nos dá jeito conceber como começando num exemplar da espécie neandertal (dizem-nos agora, depois de termos por tanto tempo usado o nome como insulto, que eram uma versão afinal inteligente desta sequência que terminou no sapiens, muito ligada à arte, à religião e aos rictos, o que só pode ser bom sinal) em pleno processo de narrar à tribo, sob a luz inconstante da fogueira, o sítio onde encontrou a manada propícia ao jantar dessa semana, seus números, sua força e o modo de chegar a ela sem estropiar demasiado os elementos do grupo. Terá de ter chegado um momento, imaginamos nós (talvez em alturas de abundância, ou num Verão que prolongava serões lânguidos fora da caverna), em que o grupo reunido deixou de prestar total atenção à informação do conto  e passou a fixar-se no modo como estava construído, notando como eram diferentes as voltas que dava cada um dos caçadores, quando lhes calhava a ele trazer as novas da expedição – reparando como a narrativa individual diferia, em qualidade, das instruções concretas que ao final haviam de munir a comunidade com os modos para melhor enfrentar o mundo primitivo. Era igual a preparação, fosse este ou aquele o caçador indigitado para preparar o relatório, semelhante o treino adquirido para estacar as gazelas esquivas na madrugada seguinte, mas a história vogando em suas primordiais cabeças parecia suplantar o simples plano da caçada, e essa aura dependia toda do preparador eleito para a narrar. Tinha um brilho próprio, essa narrativa, que depois podíamos juntar às anteriores, de outras noites e caçadas transactas, em camadas de falsidade que já nada deviam à intenção original e talvez não diferissem, numa comparação repentina, de certas confusas teorias inventadas pelo sacerdote e médico da comunidade, quando tentava cobrir com alguma mentira humana os terríveis mistérios da morte, do nascimento e das estações. Imaginamos nós que este momento, em que o objecto prático da narrativa e a sua nuvem semântica divergiram, foi aquele em que nasceu a literatura, e em particular o ramo da ficção (o da poesia imaginamo-lo mais cedo, nascido dos rituais, dos cânticos, da música, da intoxicação voluntária e do medo das coisas por explicar).
    Exacta ou não, longe ou perto da verdade (lembremo-nos de Rosseau, que iniciou a antropologia com uma série de conceitos falsos, que deviam mais ao feitio de misantropo que aos recursos científicos da altura), mesmo que só literária, esta visão serve-nos bem para introduzir a faca entre dois aspectos da ficção que a hora moderna parece querer fundir, em esforços de regressão, num mesmo e anódino objecto, com isso corroendo o fundamento do mistério. Falamos de forma e conteúdo ou, se quisermos, de estilo e intenção. A verdade alarmante, caro leitor, é que depois de um período em que os autores se dedicaram a epatér les bourgeois, encandeando-os com os faróis de uma imoralidade um pouco falsa, um pouco exibicionista, o presente parece esmagado pelo peso das boas intenções e pela perniciosíssima ideia de que a literatura deve gastar-se nas boas causas e medir-se precisamente pela força com que as defende, incluindo-as no seu repertório como um sacerdote as incluiria no dominical sermão (se todos fossem padres como foi António Vieira, a coisa não estaria mal, mas a verdade não é essa). Um modo de vos expressar este meu incómodo, seria comparar um livro mau cheio de boas intenções com um livro bom em que as intenções não interessassem tanto. Tarefa fácil, porque há muitos livros na primeira prateleira e poucos na segunda. Pareceu-me, contudo, mais interessante comparar dois romances bons e, ao que me pareceram, sinceros, que contudo escolheram universos nada confundíveis nos seus elementos, sendo um completamente dentro das preocupações de certo segmento social, e outro afecto a aspectos universais da condição humana, tão distantes quanto eternamente próximos.  
    A História de Roma, de Joana Bértholo, foi publicado em 2022 e ganhou já um número considerável de prémios, e nomeações. Faz parte de um caminho iniciado há algum tempo, não tão povoado como noutros autores recentes, atreitos alguns a preencher anualmente a dispensa da casa pátria, mas frequentemente coroado de êxito. A aderência da autora a preocupações actuais, que a mesma talvez não diferencie das múltiplas atribuições do papel que assume como activista, costuma felizmente vir munida de uma certa felicidade em misturar intervenção e intimidade, e talvez seja a aposta neste prato da balança, a sugestão, sempre interessante aos dentes do leitor, de que sai beneficiário de um certo sacrifício (a doação em vida da experiência alheia, da carne cronológica, por assim dizer, do autor), talvez seja este peso próprio mais do que as elaborações versando a condição feminina e sua particular morfologia ocidental aquilo que salva a obra como espólio a reunir nas caves da literatura. A protagonista conta em primeira pessoa (num movimento de sobreposição entre escritor e narrador que é já parte da tradição auto-ficcional) uma fugitiva ligação amorosa, iniciada com um artista de rua em Buenos Aires, durante um trabalho de activismo político ligado ao movimento cartonero, em mais uma das sucessivas crises económicas que haveriam trazer a Argentina ao seu actual líder, último exemplo do triunfo clownesco por paragens americanas. A retrospectiva da paixão é feita durante uma visita do artista a Lisboa, e inclui encontros furtuitos, mais ou menos fatalistas, em sítios como Marselha, Beirute ou Berlim. A relação é reatada e desatada, numa espécie de recorrência a lembrar um erro na matriz existencial da protagonista, que a faz uma e outra vez enfrentar-se com sentimentos fugidios e irresolúveis num quotidiano que quer estabelecer como nómada e empenhado, por isso resistindo ao cânone familiar, monogâmico e estável que comandava o imaginário das gerações pós segunda guerra mundial. Desta história faz parte uma gravidez fortuita, terminada antes do termo por um assalto violento numa viagem ao Paraguai, e sem real enfrentamento (quer da própria quer do putativo pai). As projecções pouco definidas do casal deambulam pela possibilidade de filhos, a quem a protagonista pretende dar o nome de cidades. Roma nunca é mencionada e por isso a história de Roma é a história do que nunca nasceu, a filha que se perdeu ou não se quis ter, e cujo fantasma interrogativo fará parte da vida da protagonista. No encontro rememorativo por sítios muito conhecidos de Lisboa, abrem-se dúvidas sobre o modo como os factos comuns se apresentam a cada um dos elementos do casal, revelando o relativismo de cada posição afectiva, mesmo daquelas que na história pessoal parecem ter ocupado o lugar de verdades insofismáveis. Os capítulos dão lugar a múltiplas interrogações, com oportunidade de visita a temas como a pobreza, a original indefinição das preferências amorosas, ideais de vida comunitária supra-capitalista e a dificuldade em obedecer à rigidez da lógica ecologista sem deixar com isso de participar no movimento do mundo. São ideias comuns, em vários sentidos, e estilos de vida padronizados mesmo quando apontam uma fuga do padrão - não seria difícil associá-los a correntes políticas específicas, ideários reconhecíveis, tipificáveis.  O fulcro intencional, contudo, localiza-se na questão da maternidade, tema que se em Earnaux ainda se prendia com questões de usufruto do corpo, a pílula e o advento da liberdade sexual, nas novas gerações, em que o problema da fertilidade indesejada foi resolvido, parece estar determinado sobretudo por problemas de escolha e de peso social sobre a mesma. O desconforto, espelho da inquietude ocidental hodierna, que já tem pouco a ver com faltas, e tudo a ver com excesso de opção (tornando cada escolha num gesto de activismo existencial em causa própria), prende-se sobretudo com a pressão exercida por quem já tem filhos (e convive com os sacrifícios próprios a essa condição) sobre quem decidiu não ter ou adia a decisão ou simplesmente não encontrou ensejo para isso nas suas deambulações. Pelo meio encontramos considerações sobre o feminismo alicerçadas no já um pouco gasto Um quarto para si própria e na exasperação perante o pouco caso que fazem todos da individualidade quando esta é exercida por mulheres. 
    A verdade, e é por isso que este romance de boas intenções, que toca em aspectos sinalizadores de virtude, não falha, é que a autora tem a inteligência suficiente para perceber que as questões são poliédricas e reúne o talento para as apresentar desse modo, usando de auto-ironia que baste para fintar o tom de prédica a que se arrisca este tipo de romances. A isto junta-se um dom, que diríamos vir da formação em artes visuais da autora, para a colagem, presente no ritmo sincopado com que une as cenas presentes e rememorativas, mantendo os segmentos a rodar sobre a cabeça, sem risco de baterem no solo. Quanto à linguagem, talvez gostássemos de a ver diferente, mas este é o estilo que se foi instalando por aqui, feito de uma certa linearidade frásica, cortada em trechos curtos para evitar tropeços, sempre a meio caminho entre o coloquial e as voltas mínimas para manter literário o que se escolheu apresentar. Em relação a isto sobressai o esforço, nem sempre interessante, de usar aqui e ali palavras novas, num gesto que infelizmente tem muito de prestidigitação, esse tirar de um coelho linguístico da cartola, recorrendo de repente ao dicionário de sinónimos.
     Sol Negro seguido de Outro Éden chega de um mundo mais antigo, embora também seja recente (2023). A primeira novela, que já havia saído em separado em 2022, afigurasse-nos sobretudo um exercício ficcional sobre a culpa. Um professor numa universidade madrilena, homem obcecado e sem grandes ligações ao mundo, académico mais ou menos presunçoso, sobranceiro em relação a colegas, alunos, família, história pessoal e quase tudo o que não se relacione com o seu objecto de investigação (que vai permanecendo obscuro) é expulso do sítio onde trabalha sob acusação de comportamentos sexuais ilícitos envolvendo alunos. A proscrição funciona como uma espécie de desterramento (início de um queda bíblica que a novela seguinte abordará de outra forma) que empurra sucessivamente a personagem para locais de marginalidade, separando-o primeiro da biblioteca que consistia o centro do seu paraíso (perda que se percebe ser a que cala mais fundo no personagem), depois da família, de casa para pensões sórdidas e para uma amizade pouco sadia com um vago conhecido, por quem não sentirá senão um progressivo desprezo, e finalmente do interior da sua própria razão, levando-o a abraçar uma espécie de anti-existência, o tal sol negro que encontrará representado num quadro de Carolina Lopéz, correspondendo a um eclipse solar ocorrido em 1887, que a História e Tchékhov registarão em sítio próprio. Tal como em Kafka (eco que será inevitável ao leitor da novela, como talvez a quem tenha começado a ler este passo do comentário), o motivo da acusação permanecerá por nomear. Não resulta, contudo, tão óbvia como no romance do checo a injustiça mais ou menos neutra do anátema, que no Processo se acerca do leitor como um acto de cegueira divina, um descaso, senão a mais pura das iniquidades do criador contra a criação. Porque a inocência do protagonista da novela (e nisto terá ela, como na linguagem, o maior trunfo) nunca está estabelecida, e talvez seja mais o tempo em que o julgamos merecedor de castigo que aquele em que o seu discurso, ambíguo, bilioso, pleno de pequenos ardis e falsos rebates, parece servir para o inocentar. Aliás, toda a história parece caminhar para converter o que de início se apresenta como uma incriminação injusta, no aceitamento, por parte da personagem e do leitor, da acusação como instrumento da culpa e do estado de queda como a assunção de um certo destino negativo, instaurando a rejeição como estilo de existência. 
    A segunda novela lida com o anátema de um modo diferente. O protagonista, outra vez um solitário, destacado do mundo por uma esqualidez de meios e sentimentos, deixa-se cair num progressivo abatimento, depois de saber da morte de um familiar a que na verdade pouco estava unido. O desvelar da narrativa, que concorre com o adoecimento por causas pouco claras do personagem, virá mostrar os veios de um decaimento moral genético, com origem na mãe do protagonista. A loucura da mulher, que pouco a pouco saberemos ser a do filho, e precisamente aquela que o vai arremessando para a queda onde agora o vemos deslocar-se, constitui, na aldeia da origem, mais ou menos identificado com o interior rural desertificado do país, uma espécie de selo, ou sinal de religiosidade nefanda, que a marca para o afastamento e incompreensão, como marcará o filho, apesar de todas as tentativas de fuga. Também aqui não sabemos de onde vem o mal e pressentimos uma inversão, porque às tantas parece ser o sítio, diremos a sociedade, ou a natureza humana, que concorre para a loucura, organizando-a em volta do padecente, e não qualquer defeito próprio ao corpo de quem adoece. O outro éden desta novela será afinal um sanatório para doentes mentais, um paraíso negativo cujos muros acabam separando os frágeis da violência eterna do mundo. 
    O estilo, comum às duas histórias, é daqueles destinados a fintar o caçador, porque se nega a mostrar os truques, movendo-se sem alarde entre uma precisão cortante e a suficiente leveza de quem pretende ser entendido ao modo literário. Evoca Thomas Bernhard, talvez, menos na recursividade que na identificação em itálico de certas ideias, conceitos e expressões particularmente significativas, ou condensadoras de sentido. Mas lembra muitas vezes a calma da monografia filosófica, como antes as faziam certos alemães, a circunspecção irónica de alguém que exprime abismos sem tropeçar neles, pairando na abertura apenas o tempo bastante para os mostrar à lupa, detalhando-os ao mesmo tempo que simplifica a visão trazida aos outros. É nisso muito diferente do que sai agora, sem pretensões de exotismo nem cedências ao narrativismo coloquial que vai apertando o cerco, trazido de outras paragens. É diferente também no modo como se afasta da espuma dos dias, dos debates já cansativos sobre o óbvio, do proselitismo bem-intencionado e terrivelmente adequado de certas versões, da sentimentalidade e das nostalgias esboroadas, regressando aos temas fundos da espécie, à culpa natural, aos martírios da religião, aos mistérios impostos pela imperfeição do corpo e da mente, à indecisão que fundamenta toda a moralidade e faz de cada gesto humano, desde sempre, uma fonte de interrogações.  
    Onde queríamos chegar, e mesmo que ao final acabemos a trair as marcas do nosso gosto (que é, já se percebe, mais afeito às questões que atravessam o tempo do a essas que vão sobrenadando a contemporaneidade) onde queríamos chegar é a esta ideia de que ambas as obras, diferentes em tudo, funcionam, e que isso acontece porque nelas ocorre algo que não é assim tão frequente: a literatura. É a arte da ficção que surge, esse menear transverso, que tanto se pode servir das boas intenções políticas como das indecisões mais cínicas, da música moderna como dos ecos infinitos da origem, daquilo que há-de alimentar a tribo de manhã como dos tambores ouvidos numa noite da infância, entre fumos acres e invenções de feras quiméricas. Ou mudando muito tardiamente de metáfora: o que interessa nestas viagens não é a paisagem de onde sai à tarde o viajante, mas essoutra, tão inesperada, em que acorda na manhã seguinte.     


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