Manuel de Castro. Entre malas, cartas e outras mercadorias contrabandeadas



São precisas várias vidas para se fazer um poeta. E se hoje nos parecem cada vez mais raros os exemplos dessa intemporal força maior, tão precisa e pungente quanto virtuosa e surpreendente, damos conta de que estes se assemelham a meia dúzia de marinheiros loucos e bêbados que, do fundo do porão, secretamente isolados entre malas, cartas e outras mercadorias contrabandeadas, esvaziam garrafas abertas à solidão comum. ‹‹Rodeiam de amor a sua própria desgraça›› (Hesíodo), resistindo nos antípodas, execrando as festas daqueles que sabemos mais galantes e aparatosos, girando sobre si mesmos em torno do eixo do mastro e substituindo à vez a dança das bandeiras, ‹‹até o palco ficar cheio com oito gerações - todas aparentadas por superfetação, como os piolhos›› (J. F. Benzenberg), enquanto discutem para decidir quem fará do seu rosto a imagem permanente à proa da embarcação. Na verdade, bem sabemos o quanto todos eles anseiam, sedentos, pavonear-se por todos os portos, esquecendo um mar imenso às suas costas, onde o isolado e já distante ‹‹navio sem bandeira / risca sua trajetória placidamente / como um voo de pássaro / através da música que a chuva / tamborila na noite // o porto é um limite que se afasta / e o lugre é uma presença única / na imensidão da treva››. 

Manuel de Castro foi um desses grandes poetas, cuja leitura do texto exige ainda hoje ‹‹o perigo de um olhar atento››, esse esforço contra-corrente face a um período de permanente logro e embófia, em que a grande maioria das manifestações pretensiosamente poéticas adquiriram uma ‹‹natureza teatral›› sustentadas pela falsa ideia de que ‹‹a presença e o gesto são tudo, a leitura e o texto não são nada›› (Alfonso Berardinelli). Para nos aproximarmos da poesia, basta relê-lo, urdindo um par de noites atentas e comovidas à melodia sincopada dos seus versos e lembrá-lo um pouco menos morto, através de uma biografia ímpar, mas responsavelmente teratológica, recentemente editada pela Língua Morta e escrita por Nuno dos Santos Sousa de um modo tão livre e intocável quanto obscuro e imundo, próximo do poeta, resgatando o corpo esquecido nos baixos porões da memória e atravessando os arrojos desse naufrágio fatífero com cheiro a bagaço para devolver aos leitores um tesouro, também ele rutilante, de seu nome: “O poeta passeia-se pelo seu túmulo: uma biografia de Manuel de Castro”. 

‹‹(…) não há espaço para a piedade / não há espaço para a solidariedade / não existe eco para as lágrimas que não sejam de raiva / de pura justiça / pois cada homem conhece onde estão o bem e o mal em si próprio / e só têm cumprido os que sucumbem / é o momento portanto de quebrar as estátuas / de rasgar todas as bandeiras / de eliminar as palavras por excesso / de destruir as máquinas / e renovar o espírito antes que se dissolva no excremento››, deixou claro Manuel de Castro. E após a sua morte, aos 36 anos, definiu-o Natália Correia como ‹‹um poeta refratário que não prolongou os ecos do seu sangue para implantar na praça pública o sinónimo histérico de poeta: não foi profeta Manuel de Castro. Não aborreceu os outros com os avisos da poesia humanitária que gravemente se apresenta como instrumento para modificar o mundo››. O mesmo defendeu Luiz Pacheco em “Literatura Comestível”, destacando-o entre esses ‹‹poetas de domingo, os “espontâneos”, aqueles que tendo conseguido fazer da sua vida quotidiana um singular poema, tão excêntrico que parece fantasia (poetas da própria existência, no dito de Stefan Zweig), lhes descortinamos o talento, a força inventiva, o estro inato que debitam e desbaratam numa alegre boémia, na euforia dos copos, ali mesmo improvisam e esquecem, tão despreocupados que mete raiva não haver um gravador a funcionar, oculto, debaixo da mesa… mais poetas no viver e no dizer que a sucateira que se espaneja por aí››. 

Nascido e falecido em Lisboa, caído entre os dois outonos de 1934 a 1971, Manuel de Castro passou a infância em Goa e Lourenço Marques. Frequentou o Seminário dos Padres da Consolata, de onde fugiu, servindo-lhe apenas o latim para se dedicar à poesia. Dominava sete línguas. Distinguiu-se desde cedo, estreando-se com a impressão de um pequeno livro não capeado chamado “A Zona” (1958), composto por poemas anteriores aos seus 23 anos, apenas oferecido a meia dúzia de amigos - um gesto simples e raro que hoje pouco ou nenhum poeta faria. Mais tarde publicou “Paralelo w” (1958) e “A Estrela Rutilante” (1960). Gostava de cafés, ‹‹do Montecarlo, do Royal, do Galegas, do Expresso, do Submarino, do Gelo.›› (Nuno dos Santos Sousa). E diz-nos Pacheco, novamente: ‹‹O Manuel de Castro era tão orgulhoso, não se impingia. E aparecia-nos no Gelo com umas carraspanas e umas rameiras de espanto (horrorosas!) que ostentava como se burguesas fossem mas encharcadas de bagaço››, de onde concluímos que não terão vindo assim de tão longe dois dos versos de “Paralelo W”: ‹‹É perigoso dormir com rosas. / Corram os estores››, para os quais já António Nobre nos alertara em 1892: ‹‹Olha essas moças, olha estas Marias! / Caramba! dá-lhes beliscões! / Os corpos delas, vê! São ourivesarias, / Gula e luxúria dos Manéis!››. Eram tantos os cafés quantas as vidas que teve. Apercebemo-nos disso numa das suas cartas, escrita durante a sua estada em Heidenheim: ‹‹Escrevo à máquina para poupar os tostões e ser mais longo no dizer. (…) Quanto a mim, de Alemanhas: trabalhei em Hamburgo numa fábrica de gelados, num expedidor comercial, numa fábrica de lãs, para um professor da universidade como copista, em Colónia vadiei, em Berlim idem, em Munique fui lava-pratos, lavador de carros, artífice numa oficina de meia-tigela, bar-boy no Carnaval (que lindas raparigas!) entretanto expulsaram-me do sítio, vim aqui malhar com os ossos numa fábrica de aparelhos elétricos onde aprendi o ofício de cortador de papel, depois Paris-os-cabotinos, depois Dordogne sul de França, depois Bordéus››. 

Fatal e naturalmente, a sua escrita navegava ao longo de uma viagem sem direção nem medida, passando por vários países e textos, incorporando de cada um deles a língua capaz de desviar os limites conhecidos da primeira, isto é, como diz o próprio poeta: ‹‹as palavras regressam degradadas / muscularmente trituradas alucinadamente nítidas / no esforço de uma gigantesca corola de guindastes››. Ou, ainda, ‹‹de outros países, vozes em surdina, / murmurando nos cabelos do tempo, / envolvendo este silêncio linear, / mobilado de horas, pensamentos››.  Ou, por último, ‹‹De novo as palavras, de novo o absurdo / das palavras, novamente a loucura. / De novo sem norte, cego e surdo, / o fútil jogo da Nomenclatura.››. Lembra-nos a constatação de Al Berto aquando do seu regresso de África: ‹‹Quando regresso a Portugal, há uma relação de estranheza, de distância com o português. Isso leva-me a ter grandes dificuldades em escrever em português, primeiro. Leva-me a construir em francês em português, o que me leva a toda uma série de experiências da própria escrita. Porque não construir de outra maneira? Rebentar com a gramática, com a sintaxe, com tudo…››. (Al Berto). 

Temos, assim, partindo de ‹‹um nada consistente, uma presença / inquietante, rigorosa, fria›› e talvez tenha sido essa uma das razões pelo qual se tenha diferenciado dos movimentos que pairavam no fumo dos cafés, construindo uma obra em constante transformação para sobreviver à crítica. ‹‹É, mais a mais, um poeta que ultrapassa movimentos, uma ilha de estilo que vive autofágica e emana radiação para tudo o que o rodeia: porque ele viveu com a morte na pele como nenhum outro, sem intuitos maiores de posteridade, porque ele já sabia que, só anulando tudo, a liberdade seria exequível.››, diz-nos Nuno dos Santos Sousa. Desse conhecimento prático e plural da língua livre, resultaram poemas e exercícios poéticos segundo os quais nos apercebemos de versos onde as várias línguas se cruzam e escrevem o rasto desse contágio, como em: ‹‹Porque não é o teu sorriso - I love you - um pouco mais, / digamos estad’unidense um pouco / (…) / saudade, uso do garfo, melancolia / - Au revoir.››. Outros versos, mais habilidosos e argutos, comprovam a procura por formulações menos convencionais, onde o poeta se liberta das composições óbvias, animando a língua e dando-lhe o destino que comprova que a língua escrita prevalece sobre a língua falada, enquanto resultado de uma construção ágil e complexa, própria de um poliglota, como é o exemplo do verso ‹‹- Meu ir conventual pensar de flores››. Também no arranque do poema “Versão de um antigo tema” nos vem sugerida uma construção mais ondulante e rítmica, com constantes guinadas, em que o movimento colubreado dos versos nos sugere um itinerário mais forte e inesperado para a sucessão das ideias, mantendo ancorada a estrutura, a prosódia e a coesão do texto:

‹‹Tua carne fácil de óleo e de amêndoa / indecisa a manhã de jogos perturbados / como se um destino fora o ser-te própria / minha presença pura e animal // Repousando-me em ti nem que soubera / a direcção concreta desta vida / a conclusão exacta desta luz / o peso delicado desta música / nascida e correndo-me no corpo / variável sentido que há no tempo / margem da vitalidade com que pára / por um instante nos impertencente / e se fixa beleza nos imprópria // ou ver-te meu sonho ser um rio / ou ser-te meu rio onde descanso / ou silêncio nascido devagar / (…)››

Para Giorgio Agamben, o enjambement constitui o único critério que distingue a poesia da prosa, essa capacidade de encadear um verso no outro alterando-lhe de imediato o sentido, corrigindo-o a posteriori no estrito espaço da entrelinha, gerando no leitor a ideia de um eterno devir - por ler - capaz de justificar, manipular ou cessar o verso já lido e assim subsistindo, empurrando o poema para a frente, onde, por fim, se dá ‹‹uma beleza que cai››, a queda do poema no mesmo silêncio que inaugura o próximo. E eis que ‹‹Tudo tomou rumo diferente do previsto / - pouso as mãos nas asas quebradas dos pássaros / de quem o sentido inútil se fez vida››. Manuel de Castro era especialmente engenhoso nesse desejo violento da volta e súbita reviravolta, esse ‹‹Vento do Sul que traz outra canção››, por vezes contornando as funcionalidades da palavra “que” enquanto pronome ou conjunção, atribuindo-lhe uma outra plasticidade mais eficaz, transformando-o numa espécie de vela desfraldada - ‹‹Continuemos conversando./ Jamais o tempo urge a quem se existe / que o tempo para cumprir é já tão largo / que muito resta a quem amou bastante.›› - ou leme fluctívago - ‹‹Sei quanto é doloroso / que exista um sol que nasce e morre; / aquela dúvida, às vezes um pouco ridícula, / que surge numa minúscula nuvem / (daquelas nuvens que vieram de moto próprio) / e que fazem saber / que o sol talvez não nasce / talvez não morre / que é a única atitude / a única perfeitamente aceitável / sim, isso mesmo é que é certo, / nem vem que me importe / muito a propósito.››.

As suas palavras pesam, combatem e tombam. Desempatam-se umas às outras. Vertem uma intenção e um arbítrio, uma vontade maior que avança depois da vida abstrata com que nascem à boca do poeta. Esse exercício consta em balancear a dúvida e mais do que a capacidade de decisão, em deixar que se traiam umas às outras, que se tornem de tal modo desagradáveis ‹‹no seu hálito viciado›› (Nietzsche) que tenham que gerar um qualquer mistério alternativo para que se salvem. Um dos problemas daqueles que se dizem poetas e que nada nos dizem de relevante reside na falta de crítica e desejo, na auto-satisfação imediata, na alegria e no maravilhamento pueril daquelas primeiras braçadas, dos primeiros metros pedalados a duas rodas numa rua sem saída, direção ou perigo, e que por isso não nos obriga à venturosa descoberta de um novo caminho por vontade própria, capaz de nos fazer inverter o sentido e deixar para trás o sorriso e os aplausos do pai, abandonando-o juntamente com as pequenas rodas de apoio das quais seria bom já não dependermos. Diz-nos Nietzsche: ‹‹Além, pelo contrário, tudo fala e nada é escutado. Ainda que anunciemos a nossa sabedoria ao som de sinos, os mercadores da praça cobrirão esse som com o tinir das suas moedas. Entre eles todos falam e nenhum sabe compreender. Tudo cai à água mas nada mergulha nos poços profundos. Entre eles tudo fala e nada se realiza, nada alcança a maturidade. Todos cacarejam, mas não há um sequer que fique no ninho e choque os ovos.››. É uma questão de sentido: inverter o sentido, mesmo que este nos conduza a um estado de total solidão e isolamento, que não é mais do que o verdadeiro princípio, a origem desse reino de parte nenhuma. 

Talvez por isso, para António Barahona, “Bonsoir, Madame”, a antologia que reuniu mais tarde os dois livros e os restantes poemas dispersos de Manuel de Castro, ‹‹seja o livro mais triste / que se escreveu em Portugal / depois de Só, de António Nobre. // Nesse livro cai uma bátega / no Dia de Finados; / uma atmosfera de acidez corrosiva / e condoída / (ameaçadora ternura / embebida em espuma de cerveja) / dá-se a respirar / num hálito mavioso e estelar. // A vizinhança da morte / detecta-se em cada página: / perfeita paisagem fúnebre, / sonora, pausada, agreste.››. Não há dúvidas quanto ao peso de ambos, embora o produto final de Manuel de Castro desequilibre sem misericórdia a balança, para a qual nos servimos de algumas proximidades que o comprovam:

1.

‹‹Georges! Anda ver meu país de Marinheiros, / O meu país das Naus, das esquadras e de frotas!›› (António Nobre)

‹‹Há um país fatal, / existe uma zona de aventura, um segredo. // O amor possui o tempo - Ignora / que já não há velas nem os capitães / são agora donos de seus barcos.›› (Manuel de Castro)

2.

‹‹Esmolas, distribuindo a este e àquele: e aos ceguinhos / E mais aos aleijadinhos, Mais aos que deitam sangue pela boca, / Mais aos que vêm cantar, numa rabeca rouca, / Amores, Naufrágios e A Nau Catrineta, / Mais aos Aflitos que andam no Planeta, / Mais às viúvas dos Desgredados … / E tudo seja pelos meus pecados! / E há-de coser ( serão os remendos de flores) / As velas rotas dos pescadores / E a luz do seu olhar benzerá as velas / E nunca mais hão-de rasgar-lhas as procelas!›› (António Nobre)

‹‹No entanto // prefiro-me veneziano rápido / oferecendo anéis aos mendigos / vestir-me de rubro e negro para ti / ao som dos clarins / fluir viagem de flores súplice de perigo // (…) cristalizando no oculto um sentido / para a vida e para a morte / concretizando o movimento dos nossos músculos›› (Manuel de Castro)

3.

‹‹Felicidade! Felicidade! / Ai quem me dera na minha mão! / Não passar nunca da mesma idade, / Dos 25, do quarteirão. / (…) /  Ir, pelas tardes, até à fonte / Ver as pequenas a encher e a rir›› (António Nobre)

‹‹está um poço assim / familiar tão infelizmente, / - algo na varanda é a seteira. / (…) / Infinitos étcéteras, bom dia, / por aqui tudo bem, nada de novo, / Dezembro, mil novecentos / e cinquenta e sete. Lisboa, Manuel / de todo o coração.›› (Manuel de Castro)

Há momentos em que parece que também António Nobre surge ‹‹acidentalmente vivo›› nos versos de Manuel de Castro. Talvez o soubesse enquanto escrevia o poema “Ritual”, um dos últimos de “A Estrela Rutilante”: ‹‹vive nos livros o espírito dos mortos / sua cadência direcção e nome / flores que o vento ampara / luz que se dissolve / palavras simplesmente mágicas / nascidas num gesto campo de lilases / clima de silêncio pleno e conventual / retrato antigo que se afasta e esbate››. Mas uma coisa é certa, se apagarmos os nomes que ditam a autoria dos versos, torna-se bem mais clara e evidente a qualidade dos mesmos. E é dessa condição de necessidade, que parte para o ofício livre do poema, ora impondo a evidência de um limite próprio e concreto ora irradiando infinitas perplexidades, longe da compreensão imediata e exigindo constantemente a releitura, dado o modo engenhoso como a linguagem arrasta um sistema devastado, um corpo selvagem e expressivo, um brando e indefinido estertor que nos reclama, pedindo próximo o ouvido. Todos os corpos vivem dessa destruição para se aguentarem, a tal ‹‹avaria cantante›› de Natália Correia, porque só ‹‹a integridade dum corpo exausto / estabelece o último exemplar de ligação elétrica››.

Em “Notas para poesia”, Manuel de Castro defendia que ‹‹Não existem valores para aquém do espírito; os que se apresentam na época como válidos, são os subvertidos, degradados››. E constantemente, através dos versos, nos garante ‹‹como estar só é a força flexível / de tudo que se toque, e abandone››. Propõe-nos uma filosofia inevitável e desesperada, existencialista e extrema, alucinadamente sua, povoada de rumores que estabelecem uma relação de ser aberta ao próprio ser, lugares onde a consciência e proximidade do pensamento superam a importância da própria matéria pensada, porque já ‹‹não importa / (pelo menos muito)››, momentos esses em que ‹‹Sentir é uma febre de cansaços. / Sentir vai como febre nos nervos, sincopada, / onde se sabe que o corpo está presente / porque atirei o que visto para uma estrada / estando eu ali dentro casualmente / exactamente como o esforço fútil / de ver um pôr-de-sol e concordar.››. Surge-nos de lugares vencidos, de uma cidade ausente e iluminada, tão característica das ruínas que transformam os delicados passos e as lambidelas dos gatos numa demonstração cativante de amor: ‹‹mas a fútil beleza dos gatos / introduzamos na cidade // germinará a delicadeza dos isolados / aquela agilidade ponderada / e consoante se nos revele a lua / será a nossa vida››. Uma cidade-corpo, de onde se sabem vistos do alto becos com saída, espaços estreitos e vazios de gente, ‹‹com um tempo corpóreo a devorar / um mar excessivamente quieto na cabeça / excessivamente muscular e lúcido››, espaços livres que tresandam e se querem intangíveis ao mundo: ‹‹Nós os intocáveis, os imundos, recusamos / nossa vida à condição comum. / Porque é intemporal a rosa que nos leva / entre o dia e a noite. / Nós os derrotados, impuros, oferecemos / nossa miséria a um significado / oculto e diferente  // asa branca na varanda / nome escrito nos telhados / estrada atravessando a terra de ninguém // Nós os últimos dos últimos coroamos / impérios e jardins››. 

Nuno dos Santos Sousa deteta-o e sugere-o na biografia: ‹‹A tua obra é tão só o riso-estertor, o aviso claro do que está perto e tu, como um náufrago, procuras, não a terra, mas que apaguem o farol e o céu a qualquer custo. (…) tudo foi o teu périplo testamenteiro para a morte em laboriosa filigrana de venenos nocturnos. (…) Na tua poesia o que temos? O misticismo, o onírico, a política, as viagens, o absurdo, a tua obsessão heideggeriana com a morte (que mais não é do que um ódio cioranesco à vida e ao nascimento)››. 

Temos, assim, um poeta para quem ‹‹é possível recusar a vida / mas não o é recusar a morte››. Ao longo dos poemas, lemos o quanto descria da primeira: da criação, do verbo. A aproximação inevitável (ine-vita-vel) da solidão original deu-se tão aceleradamente que com ela se extinguiu o poeta. Lemos como Deus nunca lhe serviu e como, para ele, era apenas uma ‹‹invenção que o tempo não contém / que um rio de cor e música assume / em vida e morte serena e caladas››. Pedia, pelo contrário, algo de mais profundo e real, silencioso e meditativo: ‹‹deuses por inventar / porque chegámos onde o homem está só››. Com ele, ficámos expostos e tolhidos ante essa evidência de que à sombra da solidão nos resta amar a morte, de que só a ausência da resposta constitui a aceitação de uma resposta mais sólida e precisa. Para ele a morte foi a escrita e esta tornou-se tanto mais assombrosa quanto mais nos devolve hoje a dúvida ou denúncia que nos levou a aproximarmo-nos dela:

‹‹A audácia, inconsequente, ambígua, que usas como / máscara  irá consumar-se num fogo do qual te julgas / distante, / que não poderão recusar; e te dará o único momento de / amor verdadeiro - frente ao que não existe a possibilidade / de dúvida; tem a palavra que o designa cinco letras / negras, soa asperamente; a sua música é a do / Momento Absoluto.››

E assim se despede de nós. Foi-se, fugaz e mortalmente intenso. Foi-nos, como as ‹‹feridas que se pensam de noite / e rebentam pela manhã // ou que de noite se abrem / e pela manhã são pensadas›› (Luiza Neto Jorge). Foi-se-nos, derrotado, derrotando-nos, como a música triste, bela e fria que atravessa o plano inclinado da morte.

‹‹Adeus, com serpentinas no tecto / adeus solidão com música ao longo das paredes / adeus, a minha vida não está ao nível do mar / adeus, com a boca como um poço na noite / e flores que olham e flores que aguardam a morte / adeus, eis as cicatrizes ocultas, eis o manto / sobre o qual esmaguei os ossos e o sorriso / a benevolência, o sofrimento, o traje / adeus, com todas as sombras de lágrimas / humedecendo os farrapos dos meus irmãos, / dos mendigos, dos vagabundos, dos inocentes, / dos miseráveis, dos loucos, dos suicidas, / adeus e três ou mais balas para a ocasião / adeus, desta ilha donde nitidamente vos observo / (enquanto um pião de madeira escarva o solo, / girando como o amor na intempérie, no vento furibundo) / adeus, vou falar-vos duma invenção irónica / (os livros abrem-se e fecham-se no ar e pesam) / duma invenção maliciosa, áspera, / riso na garganta, abafada voz de lama — / as minhas mãos são estas / — não há erro possível.››

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