Luís Filipe Parrado. A árvore impossível
Há muito que o Ocidente nos conduz numa perpétua excitação do olhar. Educando-nos na procura do frenesim, confirmando-nos na certeza da representação. Desde o começo da era moderna que uma desenfreada construção de fachadas, de exteriores, de ilusões, tornou o mundo num gigantesco museu. Mas as musas voaram, assim que as tentaram emparedar. O entusiasmo da multiplicação, a descoberta da reprodução industrial coincidiu com a suspeita deste abandono. O espírito museológico foi-se fortalecendo quanto mais evidente era o cadáver que mostrava. Hoje, pouca coisa escapa à fúria dos guias que dão papas a comer aos mortos. No entanto, os festivais continuam, espalham-se pelas praças e jardins, qualquer lugar é bom para a mumificação. O desejo de transparência, de imediatez, impossibilita uma relação erótica com a arte. Neste museu, calcular, acumular, gerir, planear é aumentar a miséria dos dias. O excesso resulta num definhar dos sentidos. Os objectos puídos, rasos, adequados à percepção afunilada, levam a que se salte de um para o outro, antes que algum temor ou tremor leve a pressentir a espessura do tempo.
"A cicatriz lembra-se da ferida", é o verso de Mark Strand que Luís Filipe Parrado colocou como epígrafe do livro "Museu da angústia natural", editado pela Língua Morta. Esta curta frase vai ecoando pelos seus poemas, enriquecendo-se, desdobrando-se, desenrolando-se, como uma pintura que se estende numa mesa. A cicatriz entra no mundo das aparências como marca de outra coisa, é uma síntese, não apenas de uma ferida, mas do acontecimento que a originou, uma condensação temporal adversa à época da transparência. Interrompe a passagem da mão na pele acetinada, do olhar na insipidez do rosto filtrado. Opaca, densa, rugosa, áspera, solicita a demora, a observação atenta, a escuta. Uma cicatriz é um nó dado num corpo, um nó que apenas a voz que se entrega ao tempo lento da descoberta pode entrever um desenlace. Se o tempo da ferida é o do instante, do encontro inesperado, a cicatriz pertence ao tempo da construção, dos silêncios e gaguejos, do entrelaçar do diverso, da leitura. A cicatriz, por trazer outro tempo para a superfície, permite a coexistência do que foi e do que não chegou a ser, devolvendo a ambiguidade ao mundo plano do visível.
A cicatriz da língua é o espaço vazio entre as coisas e as palavras. A poesia de Luís Filipe Parrado procura-a, tacteia-a, sem se entregar a exaltações. Com a sobriedade de quem escutou a voz apurada dos mestres, constrói um caminho junto a essa vereda. Um caminho que não se entrega a um versejar da sua impotência, mas a um confronto com os seus limites, com as suas mutações, com a sua angústia. Próxima de um salmodiar que se move entre o verso e a prosa, num diálogo que procura descobrir a sua herança. O primeiro poema do livro "Roma não perdoa a traidores", intitulado "sonho", mostra-nos o seu desejo de captar a singularidade do real: "Alcançar com as palavras/ o que aquele célebre pintor grego da Antiguidade,/ de que fala Plínio na sua História/ Natural,/ conseguiu com a luz e/ as cores. Ao pintar/ um rapaz segurando um cacho de uvas/ estas tornaram-se tão reais/ que os pássaros/ as vinham/ debicar."
A confiança e o entusiasmo desta possibilidade estão tão profundamente enraizados no seu trabalho que, mesmo nos poemas onde nos fala da incapacidade das suas palavras em segurarem o vivo da experiência, nos mostra sempre algo de incomensurável com o oco dos dias. Apesar do que nos diz, uma presença irrompe da musicalidade dos seus versos. Fruto de uma proximidade dos corpos que observa, de uma insistente certeza no atravessar das máscaras, de uma palavra que reverbera o perolar do tempo. No poema "a traição das imagens", a repetição dos versos "o efeito do vento sobre os longos/ cabelos da rapariga que passeia/ descalça junto ao mar” cria uma melodia que se separa do que nos é dito, como uma canção que nos fala de um acontecimento melancólico e nos alegra sem sabermos porquê. Esta ambiguidade interna ao poema deve-se ao rigor de uma poesia simultaneamente simples e complexa: simples na sua fluidez, na escolha das palavras... complexa porque procura arpoar nos lagos do poema aquilo que escapa às palavras, ao discurso e à razão humana. Desta polifonia surge uma presença, dando a ver a vertigem, talvez não a que o poeta diz não conseguir pôr em palavras, mas a que se produz no espírito do leitor. A ambiguidade do limite é que tanto traça uma fronteira entre dois territórios, como estabelece a figura do que limita. Se pensarmos no limite de uma montanha, do ecoar do seu corpo no azul que a abraça, não o olhamos como uma restrição, mas como a sua possibilidade.
O poema continua com o exemplo de um mestre que dedicou a sua arte à exploração da ambiguidade da representação. "As imagens traem-nos, disse René Magritte." No entanto, todo o seu trabalho evoca que habitamos nessa traição, que é a nossa liberdade e a nossa condenação. Seria demasiado simples olharmos para o gesto que indica um limite como uma resignação, ou uma demonstração de inutilidade, não se trata de um reparo conformista de uma poesia que se estabelece num lugar de impotência. Pelo contrário, confronta-se com a angústia dos seus limites que abre sobre um horizonte de possíveis. O poema termina a dizer-nos que o pintor assistiu, com 14 anos, ao afogamento da mãe, e que isto nos deve dar a entender o que está em causa. A morte é o que nos limita, é o impossível que nos mantém como aqueles que não têm onde reclinar a cabeça, o elo partido que repercute entre as palavras, entre as imagens e as coisas, que nos torna os monstros que desconhecem a ferida que se relembra a cicatriz.
A poesia de Luís Filipe Parrado não se deixa reduzir a uma leitura unívoca, a um aplanar comodista, que colhe, verso aqui, verso ali, um sentido que conforta e nos mantém no embalo turvo dos dias. Essa larga auto-estrada é abandonada numa obstinação que não entra pelo mato de catana em punho, mas, ao calcorrear os trilhos dos mestres, ao aprender a conhecer a fauna e a flora, absorve os ecos dos seus gestos. Parrado dedica muito do seu tempo ao jogo íntimo da língua, à passagem dos enigmas, ao saltar de fronteiras de um idioma para outro. O seu trabalho como tradutor, muito mais extenso do que os seus livros de poemas, faz parte da mesma procura dos frutos, da demora na contemplação que constitui o elaborar dos seus poemas. Como um artesão que tece a sua malha, sem que esta salte aos olhos do leitor, os seus poemas dão-nos pistas das suas leituras, sem nos ofuscarem com as jóias recolhidas. No entanto, num sentido diverso de Mallarmé, que dizia que o mundo existia para acabar num livro, a sua poesia devolve-nos ao mundo, procura abrir um novo caminho para os outros. "Nos tempos que correm/ é fácil encontrar poetas que escrevem/ para si e / poetas que escrevem para/ os outros poetas. Difícil, nos tempos que correm,/ é encontrar poetas que escrevem/ para os outros.”
A pintura atravessa a sua obra, não apenas como uma paixão pessoal, mas, como outro meio onde a relação com um exterior, a apresentação do mundo, aparece problematizada, reconfigurada, onde o que parece insignificante entra numa cadeia de reverberação que o integra. Um poema não é um objecto de conhecimento, mas uma passagem, uma fresta, para uma realidade que se escapa constantemente. A pintura, esse pequeno território onde se reconstrói o mundo, através da luz e da cor, é, também, onde se dá a ver um espaço mais amplo que nos escapa à intuição quotidiana.
Ao contrário do que repetem alguns críticos, a poesia não introduz uma interrupção no curso do tempo, ela interrompe a virtualidade que construímos, e devolve-nos ao tempo. Interrompe a alucinação circular onde nos fechámos e mergulha-nos na pulsação viva, na nossa vulnerabilidade medular. Foi por nos colocarmos numa posição inerte, por nos subtrairmos ao que se encaminha para a morte, que no nosso dia a dia, nos temos por eternos. A experiência singular, preservada pela poesia, é a de nos transportar para o contacto com o mundo. Parrado toma o caminho dos ofícios lentos, da demora na contemplação, não como uma fuga para o abstrato, mas como uma vontade de romper a virtualidade que nos sufoca. É através do encalço dos frutos com todos os dentes que se estabelece o sentido da sua poesia. O que vamos perdendo no afunilar da experiência, com o definhar lento dos sentidos, é a relação com as coisas e os outros. Dito de um modo demasiado breve, a relação é espírito, aquele que, dizia Hofmannsthal, desenvolve as suas maiores forças numa luta corpo a corpo com o sensível. A luta aparece inúmeras vezes, na poesia de Parrado, como, por exemplo, no poema "Exercícios de fogo real”: "Agora começo a delimitar as fronteiras/ daquele ímpeto furioso/ de raspar a luz/ com as unhas. Queria abrir/ passagens, galerias,/ remover-lhe as camadas e a casca,/ atingir a polpa. Agora/ compreendo que a luz é o fruto proibido,/ o mais indefeso;/ mas também o plano de fuga/ e o solavanco repentino da canção.”
Assim como o pintor chinês, ao ter sido feito prisioneiro, pediu se lhe podiam trazer tinta e um pincel, desenhou um caminho na parede e desapareceu, também Parrado mostra uma determinação persistente na possibilidade de se evadir, de entrar pelos seus versos e escapar à encenação que faz dentro da sua cabeça. A atenção à intimidade que desponta no detalhe, ao imponderável, a tudo o que é esquivo, o que é passagem, o que permanece misterioso e indecifrável na paisagem e na existência, leva-nos a escapar com ele ao teatro do nosso espírito. Escapar para onde? Talvez para a corrente que nos fala Hofmannsthal numa carta a Edgar Karg: “Há estrelas que, neste preciso momento, são atingidas pelas vibrações causadas pela lança que um soldado romano cravou no lado do nosso Salvador. Para essa estrela, é uma coisa simplesmente presente. Agora, substitui este simples meio que é o éter por um outro caminho de propagação, indo da alma de alguém que vive qualquer coisa até ao ouvido da pessoa a quem ela a conta. Da boca desta última para a seguinte, e assim por diante, com uma paragem no cérebro dessas pessoas, esta paragem não acontece sem uma modificação da imagem real, original. Agarra nesta corrente um poeta, profundo, e numa multidão que não faz senão repeti-lo. Não é isso que faz chorar as crianças ao fim de três mil anos, algo de verdadeiro, de real, de digno de ser chorado? Cortem a corrente noutro lugar e, em vez do conto, poderão ouvir uma oração fervorosa em que a alma, dominada pelo medo, lança um grito na direcção de Deus, tal como o príncipe do conto que, aterrorizado, se atira da janela de uma alta torre e desaparece na água negra. Corta a corrente noutro lado e ouvirás uma insensatez sem sabor. Alguns dos elos desta cadeia são, precisamente, livros."
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