Zeca Afonso. “Um redondo vocábulo, uma soma agreste”


Texto originalmente publicado na revista Ler, Outono de 2023



Quase 25 anos depois de Textos e Canções, saiu a reunião dos versos de José Afonso. Se não é exactamente uma ‘obra poética’ capaz de abalar os cânones, a poesia nunca anda longe.

 

Natália Correia, que nunca teve em grande conta a chusma desses que, logo a seguir à Revolução, desataram a crescer as barbas e se aprestaram a, do neurónio do povo, fazer zurrapa, bem antes reservava já para Zeca Afonso uma outra consideração, e dedicou-lhe a tempo algumas das palavras mais justas e tocantes que sobre ele foram escritas, reconhecendo-o como o “trovador da voz d’ouro insubmisso”. Ela que viria a deplorar os “lambuzados da revolucionarite”, e que pagou um alto preço pela denúncia do modo como a liberdade foi constrangida pela miragem de um presente boçalizado, e viu como, uma vez mais, na base do chicote se impunha “esta necrópole de quimeras democráticas”, nele reconhecia essa diferença exemplaríssima, essa lucidez que nos convoca e nos anima, a voz que fere transmitindo-nos com a maior simplicidade o desgosto e o encanto. E, assim, Natália elevava-o ao nível dos trovadores da leda e bem talhada língua, essa de oito séculos que resiste ainda no seu casulo contra a forma como a canalha lhe apedreja a sintaxe. Pois recortem-se os versos que a poeta lhe endereçou: “É de murta e de mar a tua voz/ Com algas de canção estrangulada./ Aberta a concha da trova malsofrida/ Saíste como sai a madrugada/ De noite, virginal e humedecida.// É de vinho e de pinho a tua voz/ Com pranto de insofríveis flores banidas./ Mas é pela tua garganta que soltamos/ As eriçadas aves proibidas/ Que no muro do medo desenhamos.”

A pretexto de um desassombrado reconhecimento da graça expressiva dos poemas para canto que Pedro Ayres de Magalhães foi compondo, Joaquim Manuel Magalhães assinalou esses elementos em que ocorre raramente o ritmo interior das palavras ser levado a uma disponibilidade tal que aguenta fechar-se na solidão desse ritmo a quem o ler e, ao mesmo tempo, mostrar-se hábil ao “florescer no alargamento para a exterioridade de som capaz de jogar agitação nos dizeres, capaz de transpor melodia com esse ritmo que foi primeiro sintáctico, capaz de erguer à coralidade essas palavras que nasceram dentro de apenas um”.

Sendo raríssimos os exemplos de letristas de canções que alcançam esse grau de desenvoltura que persegue o balanço da sonoridade enquanto demonstram uma capacidade de invenção na articulação da palavra, surgem por vezes alguns versos que captam essa imponderável harmonia em que, entre a palavra e a voz, os sentidos e os instrumentos, se alcança algo de novo e que nos relembra as origens da poesia lírica na sua ligação à música, à forma cantada, a poesia das canções de palco, das canções de rua.

JMM frisa que esse vínculo nunca se perdeu, por mais que se autonomizasse o fechamento sobre as palavras, já que o elemento prosódico, sem o qual nenhum poema chega a ser memorável, ficaria sempre como o resultado de um ouvido. “Talvez a alguns pareça exagero, mas o que ficará da poesia será sempre o aríete de canto, a sua prosódia na qual quase se tem deixado de falar. Por isso ficamos tantas vezes siderados com a beleza que rompe de uma quadra popular, dum rimance anónimo, da articulação de palavras banais numa cançoneta, da composição de harmonia vocabular e instrumental de um punhado de versos preso por qualquer refrão, articulado entre rimas, corrido por golpes rápidos de harmonia”, vinca Magalhães.

Para este autor o pleno céu da frase, das frases, das estrofes, dos poemas só se alcança através do efeito de captação dos outros, um dizer que é sentido “sob a forma de grito, sofrimento ou alegria”. Mas se é improvável que este crítico prodigalizasse esta exaltação das rimas pobres de Ayres Magalhães a um número alargado dos nossos letristas de canções, ainda menos o faria, porventura, aos da chamada música de intervenção, sendo fácil pressentir o desdém que foi manifestando pelas liberdades que trouxe Abril, tendo deixado tantas vezes expressa a repugnância com que assistiu à forma como o “povo português” reclamava enfim o litoral, cunhando essa tão extraordinária quanto deplorável máxima: “Trouxe-os a democracia, o fascismo/ tinha-os feito assim. Deram-lhes/ a liberdade para isso, estragar o mar.”

O certo é que, apesar desse desgosto íntimo pela desordenação de certos privilégios e também de um sentido de gozo exclusivista que se viu abalroado pela “insolência democrática”, JMM foi quem melhor soube baralhar certas expectativas quanto aos elementos que produzem essa forma de encanto por certos discursos, uma elevação que vai por onde menos se espera, que tantas vezes aprende como nas “sonoridades soterradas”, nos elementos aparentemente mais pobres, se oferece à voz matéria suficiente para crescer, alcançar um ímpeto capaz de provocar sobressalto urdindo inusitadas combinações vocabulares e sonoras

 “Toda a poesia é tradicional quando é nova”, lembra JMM. “O conceito de tradição não é, de modo nenhum, sinónimo do conceito de academismo ou de qualquer outra sufocação escolar”, acrescenta. E logo arreganha os dentes e prova a sua inscrição conservadora afirmando que “académicos eram o espírito e a musicalidade da horrível cartilha aprendida no ortodoxo idealismo neo-realista pelos autores de poemas de canção dos anos 60 até meados dos anos 70”. Se esta generalização grotesca funciona como um programa para desvalorizar em bloco uma série de autores que tiveram um papel decisivo no esforço de desaçaimar a expressão e recuperá-la após décadas de humilhação e de conformação com esses foros de uma cultura elitista, ela mesma tropeça quando se deixa enamorar e se apropria de elementos das tradições populares, estabelecendo uma dicotomia através de uma sublimação estetizante, num exercício uma vez mais arrogante, snob, que esconde atrás de si um elemento classista. É uma espécie de pastiche, por um lado, ao arregimentar esses elementos que lhe são estranhos, por outro não esconde também essa tentação burguesa de neutralizar tudo o que surge como novo, e se sustenta numa tradição que se impõe contra o sufoco desses desequilíbrios de poder assentes tantas vezes numa exaltação dos motivos clássicos, e daquele ideal de uma harmonia imperturbável, em que os senhores gozam os seus privilégios sem que a ralé tenha sequer o direito às mesmas aspirações ou, em alternativa, a contestá-los.

Se resulta mais ou menos evidente que é uma proposição vã querer reunir e fazer passar os “textos não musicados” de José Afonso por uma “obra poética”, sendo o prefácio ao volume publicado pela Relógio d’Água todo ele uma tentativa tão comprometida com essa promoção demagógica e até mesmo presunçosa, o que, de resto, não combina com a referida recusa de qualquer construção fetichista ou mítica que se criasse à sua volta, não se percebe muito bem a obstinação com que o organizador, Jorge Abegão, prossegue esse fim. Sendo de considerar o quanto certos atrevimentos acabam por reconduzir um intuito de homenagem a comparações patéticas, este vem defender uma urgente e delirante revisão dos cânones literários elitistas que teriam “instituído uma divisão hierárquica entre aquilo que consideram uma poesia maior, que é literária (para ser lida em silêncio), e outra, inferior, para ser cantada”. Abegão conforta ainda os leitores que, certamente, como ele não terão tido nem vagar nem o prazer de mergulhar nesses cânones a ponto de ficarem ensopados, como é mais fácil que aconteça através do efeito emocionante que alcançam certas melodias ou canções, mesmo por vezes as mais banais, não compreendendo sequer como os tais cânones literários protegem precisamente essas espécies ameaçadas por estarem deslocadas de todo o quadro dos consumos e dos modelos dessa “cultura popular” que, em nome do espectáculo e dos superiores desígnios do entretenimento dirigido às massas, acabaram por expulsar aqueles elementos de uma tradição enraizada e profunda, exuberante mesmo se convivia com a miséria e até com violência, para dar lugar àquilo que nos trazem os programas de televisão, os concursos e os festivais, todo esse regime favorável a uma igualdade monótona e à lógica do pastiche.

Se além de um sentido extraordinário da melodia, do poder de embalo da sua voz para transmitir uma mensagem exaltante e animadora, há nas palavras de José Afonso uma força vocabular e, por vezes, um talento capaz de superar os efeitos mais banais e conferir às suas letras uma certa concatenação que supera os seus elementos e alcança uma radiância inesperada e poética, isso só poderá ser reconhecido de forma pontual, correndo o risco de se fazer passar por poesia letras de canções que, na fragilidade com que nos chegam na folha de papel, são incapazes de produzir na zona interior de leitura de quem recebe o texto de forma directa, desacompanhado de qualquer arranjo musical, algo que acaba por pôr em causa o próprio ideal de um esforço de reconhecimento desses momentos excepcionais.

A enorme importância que Zeca Afonso assume no nosso contexto cultural e sociopolítico, e que continua a fazer dele uma presença viva e tão influente junto das gerações que lhe sucederam, prende-se à forma como a sua intervenção assume força sobretudo nos aspectos da invenção musical, algo em que tem insistido B Fachada, provavelmente o músico que melhor se tem sabido aproveitar dessa influência, notando que Zeca “é o modelo original para a leitura crítica da tradição, para a africanização da cultura portuguesa, para a canção como intervenção, para a oralidade da língua”. E Abegão consegue, a este respeito, ser bastante competente ao traçar uma síntese desse campo de referências e das diferentes tradições que José Afonso soube combinar, nomeadamente na escrita das letras, socorrendo-se “de quadras e canções populares, muitas delas transmitidas oralmente, das medievais cantigas de amigo do cancioneiro galaico-português, das quadras de verso livre com métricas variadas, de memórias literárias e filosóficas, de figuras das mais bizarras às mais sonantes, um universo lido e digerido a par de memórias de sonoridades africanas, de recordações de infância e de outras andanças”.

O génio de Zeca Afonso está nesse balanço impetuoso em que apura o seu canto entre diversas fontes, misturando num copo de água só a força radiante de uma vasta tempestade, capaz de nos fazer sentir devorados depois de um gole, como se lhe sobreviesse um soluço que nos fizesse apertar o copo derramando não a água mas a nós mesmos. Fica a nossa memória já ecoando cheia dessa voz radiosa, e as palavras que nos canta soam com uma nobreza claríssima, por ser simples, por não precisar de muito, por se bastar com essas coisas quase ignoradas: “Pardal velho/ Morre à sede/ Num mundo pequeno cresci/ Bolor no retrato/ Cotão na parede/ Por lá rompeu o bicho/ (e o monturo)/ Cheios de ofícios/ E manjares maduros/ Não comemos aqui”.

Saber de música significa, não apenas ter esse génio auditivo que consegue aproveitar-se do balanço das sonoridades para despertar sentidos impossíveis de representar entre o que se vê e toca, mas ainda alcançar esse enlevo que pede um sentido de comoção imediata, ao ponto do corpo se sentir instado a dar ao que o chama esse desenho que vem bailando, esse sentido que se alcança pela libertação de si ao ponto de a poesia se fazer carne. E isto implica também uma compreensão profunda do silêncio, mesmo esse “Silêncio de paz rezada/ [que] jaz no fundo dos atalhos/ Pelos pinhais e quebradas/ soa a lata dos chocalhos.// Lá dentro a candeia/ é luz de sangue acesa/ o sal do pão adoça/ a vida presa.”

Coisas simples, nesse alcance que nos é comum, e que permite essa suprema composição coral, as vozes que se entretecem criando um quinto elemento como quando se dá pelas lavadeiras lavando, encantadas de tal modo que mesmo se os lenços coram já de estar brilhando, não se interrompem, ou esse “Marujar movediço/ nas represas” que ele nos diz que “é poeira de milhos/ e sol de palha acesa”. 

Há composições de uma subtileza imensa logo nos primeiros textos que saíram da pena de José Afonso, colados aos cantares de amigo, e muito cúmplices daquela concepção medieval de que o mundo material não passa do aspecto visível de uma totalidade metafísica, muito sensível a esse cruzamento entre o abstracto e o concreto, e à urdidura de um valor semântico e metafórico. “Olhai o nardo e a cicuta/ Domadores/ Em todos os trapos e andeiras/ Se edificam sonhos absurdos/ E Impérios”.

Em trezentas e tantas páginas não é difícil colher exemplos exaltantes de modos complexos, de modos lineares, de modos inteligíveis e outros obscuros na maneira como José Afonso faz a língua discorrer, “como discorre a água, o fumo, a nuvem ao vento, o sangue na pulsão da vida” (JMM), na forma como brinca, troça, sem deixar de ser sério. Chega a haver mesmo momentos soberbos, como este: “Vem à cabeça um náufrago/ encuecado/ meu antepassado/ Acabo ó Lima de ler/ o teu poema/ Envolvido em plâncton e sal-gema/ água agreste em canudos/ ó terra de corvos mudos”.

E se há ameaços destes, páginas em que de súbito nos confrontamos com belíssimos versos, mesmo assim são em número muito residual comparado com os outros que, destituídos de uma malha musical, não conseguem interromper-nos, provocar um desacerto íntimo. Resta-nos colher lampejos aqui e ali, e ouvir as canções na nossa cabeça, como se tocadas noutra divisão por algum vizinho, ou podemos fixar-nos em composições dessas a que “responde o teu silêncio/ preso à corda do sino”… “Os ares violando/ Confiscados mitos/ Gonzos abrindo/ Pélagos imundos”…

Podemos exercitar-nos nesse coro dos caídos, enredando pedaços, destacando certas imagens e fulgores como a desses “prados do mar em flor”, ouvindo o tempo habituar-se a essa procura paciente, como quem tenta escutar o colapso na ordem das coisas ou alguma harmonia mais perfeita: “Cai a flor/ Da laranjeira/ À cova Incerta// Água mole/ Água bendita/ Fresca serra// Lava a língua/ Lava a lama/ Lava a guerra// Já o tempo/ Se acostuma/ Á cova funda// Já tem cama/ E sepultura/ Toda a terra”. Mas o mais incitante é esse talento de exigir a sós um ajuste de contas, de congeminar como certos bichos de treva um ardil musical e ir: “Vou pedir contas ao mundo/ Além naquele coreto”.

Muitas páginas não nos dão muito, mas depois podemos resgatar da cantiga do monte a “fragrância morena” da “ondina açucena”, ou o momento em que se espreita aquela “Clareira do ar/ Dançando na nuvem/ Mudando em mar”. Se esta reunião nos dá algum trabalho não deixa também de ter o suficiente para cultivar a avidez. E depois damos por momentos verdadeiro inspirados como este poema escrito em 1973 na Prisão de Caxias: “Um velho soluço/ Traz-me o teu anexo/ Priva-me dos braços/ Quebra-me a infância (…) Quebra este silêncio/ Anda de alpergatas/ E no entanto treme/ Vive dos tentáculos/ Digere peixinhos/ Enche as algibeiras/ E no entanto dorme/ Namora as formigas/ Foge como se/ Soubera que o vento/ Não pára fustiga/ Não geme madraça/ Ansiando por/ Caminhos do mato”.

No geral, e apesar desses momentos dispersos que cintilam e deixam clara a força de perpetuação que o canto emprestou a estas palavras, falta depois aquele ímpeto musical que traz outras coisas, e sem isso apetece citar outro dos textos escritos naquela prisão: “Sem manejos de tropos ferramentas/ Morreremos à míngua de vitórias/ Um rio sem memória e eis-nos mortos/ Sem léxico. Sem poema (…)”.

A música não vem apenas arredondar, mas soma de forma agreste, traduz para essa forma de transporte que anima um eco, despertando outras lembranças e nexos, traz um brilho mais forte e irradiante a esse sal de linguagem feita. E, assim, o que de melhor têm estas composições é essa noção da lonjura, esse modo humilde de acenar ao sentido forte que a poesia prende. E realmente parece que José Afonso chega à música vindo de lá, dessa forma de desejar prender um sentido na intimidade ligando para sempre dois mundo numa terra onde ninguém responde a ninguém.Ele dizia: “Venho duma outra vontade”.

A poesia ou a música são formas engenhosas dessas que os homens encontram para que as suas vozes embarquem num silêncio aflito. Transmitir essa vontade não se confunde com as ânsias de moralizar que são próprias dos tolos. No imenso capítulo do que faz falta, Zeca sabia que “quando o pão que comes sabe a merda”, “quando nunca a noite foi dormida”, o que faz falta mais que tudo é “animar a malta”. E sobretudo se não nos faltam motivos de desencanto, esse ensinamento antigo que faz que alguns saiam de palavras, serve para “motivar os dias/ Refazer a infância/ Pousar ainda a calote sobre a tábua/ e espreitar;/ o velho passeando no deque/ os pássaros na brancura conduziam a barca/ E tu silêncio, sempre vinhas”.

Coisas simples com que sempre se pode contar. Esse dar por elas que está ao alcance de todos, e que serve como experiência mínima, restauradora de um certo equilíbrio, de uma certa paz: “Aqui vivem formigas/ Cântaros, papoilas/ ervas daninhas”… Coisas de nada, mas que servem para marcar encontro, ser constante… “Na terra onde o loureiro medra ao quilómetro dezassete/ E se afoga a virtude em cântaros de água/ Não há lugar para a débil panaceia de risos,/ As árvores crescem e tu com todas/ Fora do pedúnculo/ Junto à terra”.

Se não é exactamente uma “obra poética” capaz de abalar os cânones, a poesia nunca anda longe. Pelo menos a cabeça vai virando no ritmo e na direcção certa. O mesmo não se poderá dizer da maioria desses livros que andam por aí, essas formas de enfado e fastio que, como dizia Leonard Cohen, se fazem publicitar como poesia. 


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