André Barata - Um tempo sem travão



 


Quem comparar a produção teórica dos diversos departamentos portugueses de filosofia com os seus congéneres de outras latitudes – e não é preciso ir muito longe – verifica que, no meio de trabalhos mais ou menos meritórios de história da filosofia, teses de doutoramento sem trabalho de edição que se transformam rapidamente em livro e a mera junção de artigos díspares em colectâneas, há uma atenção ao actual que pura e simplesmente não existe. O actual, claro, não é equivalente à actualidade, às aflições de alma mensais, semanais ou mesmo diárias que tomam de assalto os meios de comunicação ou as famosas redes sociais; também não significa que não se deva interrogar e combater essa “injunção” que nos obriga a ter opinião sobre todo e qualquer assunto ou que não se pode ser profundamente intempestivo fazendo apelo a outros tempos e lugares – bem pelo contrário, há bastante de actual em certos gestos de recusa. Significa, no entanto, que há um certo conjunto de questões – do antropoceno à aceleração, da museificação das cidades contemporâneas ao pós-humano – que permitem interrogar o nosso tempo mas cujo eco, nos diversos departamentos de filosofia, é bastante escasso, senão mesmo inexistente. Passando por uma série de assuntos que, de forma mais ou menos mediática, se encontram na ordem do dia – da eutanásia às noções equívocas de pós-verdade e pós-democracia, do rendimento básico incondicional ao impacto das redes sociais –, o recente livro de André Barata, professor de filosofia da Universidade da Beira Interior – «E se parássemos de sobreviver? Pequeno livro para pensar e agir contra a ditadura do tempo» – vem contribuir para que um muito discutido tópico, a aceleração do tempo, não fique confinado a discussões e publicações académicas – retirando-lhe o jargão e os protocolos de escrita académica e devolvendo-o à cidade, onde deve ser discutido. Tal como um recente livro editado entre nós, e hoje já um clássico – «24/7. O Capitalismo Tardio e os fins do sono», de Jonathan Crary –, também este livro de André Barata encontra nos efeitos do capitalismo sobre a temporalidade um dos momentos em que aquele demonstra todo a sua capacidade de penetrar nos mais ínfimos pormenores da vida comum e privada. «São três as conformações impostas ao tempo. Uma concepção do tempo sócio-económico como uma continuidade férrea e sem falhas, materializada por uma juridificação das nossas relações com o passado e com o futuro. Uma aceleração da vivência do tempo para a qual somos compelidos. (...) Uma concepção do tempo de vida como mercadoria, que faz da actividade social e individualmente realizadora que o trabalho deveria ser para as pessoas uma redução delas à categoria abstracta de seres mais ou menos produtivos» Se a aceleração do tempo não é um tópico novo, tendo-se tornado uma marca de água da modernidade – e poderíamos juntar, para estabelecer uma espécie de estado da arte sobre o assunto, os trabalhos de Harmut Rosa, sociólogo alemão, e um famoso manifesto aceleracionista, escrito por Alex Williams e Nick Srnicek, que pretendia combater o capitalismo com mais capitalismo –, parece relativamente consensual, no entanto, que esta aceleração vertiginosa encontrou, nos últimos anos, um novo patamar de penetração no tecido da vida. De facto, como defende André Barata – não se distinguindo nisso de Crary e outros teóricos –, a aceleração não significa que os relógios começaram a andar mais rapidamente, mas que a nossa relação ao tempo, que não é natural, mas técnica, social e politicamente construída, se transformou de tal forma nos últimos decénios que, actualmente, «medimos muito mais o que nos acontece, que tornámos tudo mais contável, mais objectivamente mensurável e, por isso, também mais comunicável». Há, digamos assim, uma subsunção do tempo a uma lógica extrativa, em que cada segundo sente a pressão para se tornar produtivo e em que aqueles momentos singulares, irredutíveis a uma lógica produtiva – o pensamento, prodigioso na arte de perder tempo, surge como um dos exemplos maiores –, se tornam cada vez mais marginais. No entanto, esta aceleração facilmente constatável – uma pequena correcção a André Barata: um estudo efectuado pela Deutsche Grammaphon defende que as interpretações de Bach estão, efectivamente, mais rápidas – não é politicamente neutra. Pelo contrário, é devedora de uma lógica em que tempo social, tempo da vida e trabalho se tornam quase indiscerníveis. «o tempo livre dispõe-se a tornar-se tempo produtivo, como se a contrapartida fosse o tempo de trabalho ser tempo de lazer e como se a mobilização dos tempos todos da pessoa fosse a demonstração do seu empenho no cumprimento das metas antes acordadas, dos objectivos que o próprio há-de auto-avaliar, responsabilizando-se por qualquer fracasso.» Não é difícil perceber, de facto, que o tempo de lazer, claramente separado do trabalho até determinada altura, tem vindo a desaparecer sem deixar rasto, substituído por um tempo, ainda biológico, em que o que se encontra em causa é a mera recuperação de energia laboral. Ou, por outro lado, é o próprio trabalho que se torna imanente ao tempo de lazer e os gestos mais banais – vestir, comer – estão desde logo mobilizados para uma lógica de produção de lucro, tornando a vida, nos seus mais ínfimos detalhes, um empreendimento comercial. Mas não é apenas nesta indistinção entre trabalho e vida que a «aceleração do tempo social» se deixa ler. Acarretando consequências relativamente aos marcadores temporais – passado, presente e futuro – que coordenam a vida, a aceleração transforma o passado ou em objecto de museu ou em conteúdo traumático – a discussão em torno do passado colonial português não tem escapado a este dilema –, cria representações do futuro desprovidas de qualquer desejo, de qualquer criação de possíveis, e cria, naquilo que o historiador francês François Hartog chamou de «presentismo», isto é, um modo de compreensão do tempo em que o presente impera, um «presente expandido» cujo contraponto é o imaginário contemporâneo da catástrofe – segundo a conhecida frase do teórico americano Frederic Jameson, «é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo». «Não será um futuro de desejo, projecto e esperanças depositadas, em que aguardamos a nossa própria realização e nos tornamos de alguma maneira melhores, mais felizes, em suma, um futuro de fins, mas, diversamente, um de causas e efeitos, tomado como material manipulável ao serviço de uma construção (...). O imperativo deste futuro imediato, na certeza de uma cadeia causal produtiva, por ordem de um tempo que mostre resultados, é na verdade um futuro que não é futuro, mas presente expandido» Mas esta aceleração do tempo social, segundo André Barata, não se limita a esbater a distinção entre passado, presente e futuro num mesmo imaginário, ou a estabelecer um limiar de indistinção entre trabalho e vida. Na sua declinação nas redes sociais – como defende Jonathan Crary, actualmente não nos desligamos, no máximo entramos em «modo pausa» –, é a própria democracia que se encontra em causa. De facto, aquelas obedecem a uma «discussão de trincheiras, schmittiana, de amigo versus inimigo» e o espaço público, reconfigurado a partir delas como indistinto do espaço privado, perde o seu lugar como espaço de concretização do projecto democrático. «A discussão pública baseada em razões que servia, até então, de modelo de comunicação nas democracias maduras é substituída nas redes sociais por uma discussão de trincheiras, schmittiana, de amigo versus inimigo. Uma comunicação intimidatória, que mais se assemelha a condutas de bullying, impõe-se, sem filtro, à discussão estruturada argumentativamente a partir de uma base comunicacional de civilidade» Seria preciso interrogar demoradamente esta ideia de espaço público no que ela pressupõe relativamente à linguagem – que terá de ser transparente, cheia de boa vontade, segundo protocolos de escrita e de elocução que nada têm de natural –, mas também enquanto mecanismo de exclusão que, nas suas concretizações históricas, nunca deixou de o ser. Em todo o caso, esta república avançada dos espíritos parece ter demasiada pressa em recobrir com um manto de civilidade as dissensões tantas vezes violentas que se fazem ouvir.

Comentários

Mensagens populares