Vasco Graça Moura. Isto é contra a morte


Texto originalmente publicado na revista Ler, no Outono de 2024


Passados dez anos sobre a morte de Graça Moura, a exigência de lembrá-lo coloca-nos perante a tensão de um perfil radiante, num contraste decisivo face a uma época em que as consciências se estilhaçam e só se exprimem por meio de detritos. Com o seu balanço e enlevo renascentista, ele soube prender nas mãos o fulgor dessas sínteses que renovam a consistência do mundo.


Magnífico artesão, trovador solerte, rapsodo descarado, orgiástico, com uma desenvoltura malabar, absorvente, vitalista. Vasco Graça Moura é menos um poeta que nos força a reconhecê-lo pela perfeição de algumas composições supremas, do que pelo dinamismo da sua personalidade poética, ela, sim, radiante, e que parece deixar os versos como um rastro, vestígios do seu modo particular de frequentar essas zonas exigentes onde uns poucos seres, “tendo bebido da mesma fonte, sabem como se pôr de joelhos, prender a água nas mãos sem a deixar fugir, até ao gole radioso” (René Char). Interessado a fundo na dimensão sensual da existência, menos do que páginas absolutamente memoráveis, deixou-nos um embalo voluptuoso, um sentido de busca incansável, de cerco animoso ao infinito, como se a vida no seu fluir incessante fosse a sua verdadeira vocação e promessa.

A sua poesia faz-se de avanços e recuos, numa mimese do flutuar dos dias, abrindo parêntesis fabulares, balançando do monólogo interior ao flash de lembranças remotas ou de sensações repentinas, numa condensação de tempos diversos, com o passado que volta a ser, aos retalhos, presente, trazendo figuras, fragmentos, num diálogo incessante com as mais variadas tradições artísticas, gerando um efeito de proximidade, afecto, cumplicidade quotidiana, aventura existencial. É um ser que se aproveita da mais radical expansão do elemento musical, esse que lhe permite desencadear sempre novos movimentos ou frases, num feliz desenvolvimento que se serve da sua destreza rítmica para hibridizar lírica e narrativa.

Há uma indistinção fabulosa de registos, e isto deve-se à elegância suprema e que chega a passar por displicência na forma como as suas trovas se alimentam seja do que for, de improvisações de diálogo, imagens isoladas, da epifania de um instante, traços de um carácter, de um gesto alheio, da luz de um rosto. Caça onde for, pois tudo lhe soa, ou assim ele inclina os elementos do real com que se confronta, traduz, como se dominado por uma ênfase amorosa, e aquilo vai e “a ave canta no galho de uma veia/ descobre o corpo todo    vivendo na garganta/ e tanta    tanta sede lhe insinua”.

É um mestre da vida silenciosa, da voz madura, do íntimo recorte, desse fiar da solidão negada, “em branco    lugar geográfico”, empurrando-nos para o pólo cardíaco da existência. Tudo nele é uma lição de volúpia, dessa articulação sinestésica das impressões, próprias e alheias, capaz de ver Georges Braque aparecer para pintar-lhe uma manhã “numa cabeça azul ou numa concha/ em que um peixe pousado    não pesasse/ mais que o pincel copiando-o da água”. E o leitor que faça o favor de reler esses últimos dois versos, pois está ali sintetizada a magia de uma obra que exprime a sua radicalidade nesses pormenores que já em si nos dizem como a poesia tem a sua irredutível essência nesse mergulho numa intimidade expansiva, instaurando na comissura entre planos esse grão radioso, esse detalhe que permite desforrar-se dos aspectos mais desoladores da vida.

Temos muitas vezes a sensação de que tantos dos versos de Graça Moura acompanham a convalescença face aos arroubos de ordem passional, e ele faz-nos ver como a verdadeira nostalgia requer uma disponibilidade emotiva muitíssimo invulgar. No mesmo poema onde colhemos aquela imagem, ele diz-nos daquela manhã que se tornou tão táctil, feminina, “parecendo caber toda num regato”. É uma sugestão que facilmente poderíamos estender à própria ductilidade do seu canto, um modo de nos fazer ver como a sobrevivência é uma superação, sem abrir mão desses detalhes indevassáveis. Muito mais do que aquelas poéticas que se reclamam da experiência, a lição de rigor e de enlevo desta obra permite-lhe reclamar uma singularidade evidente “num país como o nosso, de epigonismos óbvios e admirações sem conteúdo” (Eduardo Lourenço).

O que nesta obra se colhe quase em excesso e que rareia em tantas outras consideradas tão representativas para o efeito das periodicizações geracionais ou epocais é esse verdadeiro gozo por uma experimentação que simula pela escrita as inclinações da carne, que nunca se deixa representar como triste por demasiado tempo, nem se embaraça em declinações ou espasmos merencórios, nesses regimes da subnutrição ou das subvidas. Não se confundindo com “gente das sombras    sobras de cascalho”, com esse “povo da morte submersa    incerto/ sem norte    inerte   numa espera/ num submarço    imerso numa farsa// quase sucata o aço de seus ossos/ ruídos de ferrugem   de ferragens/ ungidos de terror e padre-nossos”.

A poética de Graça Moura em muitos aspectos confunde-se com uma érotica, uma razão de ser que o afina para efeitos de conquista, um encantamento que exige ser saciado… “envergas essas roupas cujo fio/ segreguei lentamente    equilibrado/ na linha que é da margem e do rio// por vezes vacilante   encurralado/ entre a tua epiderme e o tecido/ mas sempre no teu eco debruçado”.

Na poesia portuguesa das últimas décadas, só encontramos esta força de encadeamento sedutor e com um tão característico perfume decantado desde Ovídio em António Franco Alexandre. Estamos a falar de estudantes que são capazes de aguentar frases tenebrosas como superfícies movediças que atraem e se deslocam e caçam com tal subtileza que o gesto fatal se confunde com o de uma carícia. E Graça Moura explica como a mesma mão que afaga um rosto nesse gesto lhe apaga as rugas.

É um privilégio esse de conhecer exactamente como actua o tempo. Nisso se especializam os que aprendem a dominar de forma magistral os ritmos. É um privilégio daqueles raros que se aplicam a “ainda segurar mitos”. O que ele nos foi mostrando é que “o tempo é também uma criação verbal”, e que, uma vez que “as coisas são/ irrepetíveis vamos ensaiando/ medida e desmedida”. Muitas vezes por meio de artifícios, coisas de nada, “pequenas conversas, leves incidentes”. Trata-se de servir-se da intensidade, apaixonar-se mesmo que a custo, para adestrar as mãos: “as mãos encordoadas detalhando/ os pormenores de sal e outras tantas/ rememoradas curvas dos sentidos,// neste comércio de várias consistências/ de espaço e tempo cruzados nos ouvidos”.

Ele fala-nos de uma “fidelidade artesanal às coisas” como “do coração à vida”… “com ela aprendes / reengendrar o espaço/ a produzir as coisas/ à tua desmedida”. Entre coisas milenárias e outras tão perecíveis, adianta que “o real é contínuo e maternal”. E se “nós afirmamos coisas por costume/ e por rotina erótica”, convém ter um motivo profundo. Afinal, do que se trata tudo isto, todo este empenho, em que sentido se mostra comprometido? Graça Moura não se perde em ambiguidades a este respeito. “Isto é contra a morte”, diz-nos ele mais do que uma vez. E o poeta está a todo o momento consciente de que “a leitura do efémero transcende/ suas minúcias próprias”. Em vez de se afadigar nos tais “jogos para adiar a morte”, ele prefere o desaire e o ímpeto daqueles seres que buscavam o êxtase numa espécie de movimento perpétuo e que “o único sítio que tinham/ era onde cair mortos”. Prefere espiá-los, irados, invadindo os lugares pelo modo como os diziam, e reconhece que “a necessidade/ é a mãe de toda a cultura”.

Tão impregnada de elementos que se disputam num áspero contraste, com a angulosidade de todos os seus efeitos superficialmente distractivos, a força desta poesia vem do seu tão sagaz processo cumulativo, do modo de suster um longo argumento. É uma poesia que se dá o tempo para nos mostrar como “todo o rigor da ruptura/ cria os possíveis/ da fala”, como mesmo “o modo de produção da noite/ é literário”. Não há, assim, nenhuma concessão a essa vulgata que tem circulado entre as mãos dos pequenos prevaricadores do verso que se habituaram a dispensar qualquer firmeza de propósitos aliviando-se com aquele slogan de que isto não passa de uma ocupação senil de uns que outros que só conseguem dizer que sofrem o peso das suas consciências.

Afinal, “para quê chamar sempre a surda morte/ pelos campos sem fim”, questionará Graça Moura. “Para ser poeta é preciso ter tempo de sobra:/ horas e horas de solidão são o único meio/ de se formar algo, que é força, abandono,/ vício, liberdade, de dar estilo ao caos.” Ele sublinhou estes versos de Pasolini, com quem tinha alguns traços decisivos em comum. Desde logo a mesma “desesperada vitalidade”, mas também aquela audácia expressiva que o levou a conduzir a sua poesia a um registo perigosamente colado ao da prosa, rasando o desleixo estilístico, em versos dissimulados, num regime formal incerto e informe. É um engenho deceptivo, de forma a se dar margem e sondar outros processos, e, no limite, galgar de todo as convenções e trocar o lirismo pela vertigem do desaforo. O que é evidente é que Graça Moura partilhava dessa ideia de que a poesia responde pelos impulsos que extravasam fronteiras, e vai pelos dias e as noites “em descuidada/ incandescência/ cuidadosa/ de paciência”. É uma arte que se nutre da variação e da justaposição de elementos contraditórios, das “fracturas da verdade”, do “questionável prazer do sentido/ entre ordem e desordem”.

Estudando os processos de memória, os modos de precipitar a atenção, a poesia adapta-se e extrai a cada momento uma estratégia da configuração que encontra ao redor, e dispõe-se a provocar desacatos. E, no limite, se dela não se espera outra coisa senão que anime e exalte as hostes que se destinaram a alguma ficção degradante, então esta cala-se: “assim nos comportamos perante os descritivos/ comércios deste tempo / o silêncio é uma/ qualidade da injúria”. Mesmo se a um dado momento não sabe o que dizer ou fazer, “a escrita polui-se: refaz seu exercício/ e ao fim é exercida em labirinto”. Mas se a sua potência lhe vem da primazia que estabelece a favor do ritmo, desse “conjunto virtual de todas as ritmizações concertadas da linguagem tornadas sensíveis por simetrias, cesuras, repetições” (Pierre Alferi), então o que esta não pode esquecer, como vinca Graça Moura, é que “o tempo treme”.

O tempo é decisivamente um efeito da nossa percepção, e, portanto, é um fenómeno sujeito a uma espécie de leitura. Por isso é tão fácil a certos seres sentirem-se deslocados, perderem a linha em que iam, darem por si transportados, incapazes de se sintonizarem com essa linha de rebentação a que chamamos o presente, ou o instante actual. E é certo que, à medida que envelhecemos, esse instante arrasta já um peso de tal ordem que tende a ficar retido, respondendo às solicitações de quantas ressonâncias ou fantasmas desses que por tudo e por nada nos beliscam, nos puxam a manga. Há seres atravessados e que sentem a sua percepção a todo o momento corroída, contaminada, apreensiva ou particularmente susceptível a captar rimas internas, sombras ou ecos bastante dilatados face às suas origens. E numa época como esta, em que se volta a raspar o fundo, tropeçando-se nesses escritores dispostos a iludir todas as dificuldades, colocando sempre a ênfase em questões muitíssimo oportunas, mas de outra ordem – urgências sociais de todo o tipo; beneméritas noções muito humanas e assim por diante – ainda falta aquela necessidade da escrita como uma exigência imperiosa, como se dela dependesse a recomposição do mundo.

Enquanto tantos conferem certificados a essa literatura de complacência, a poesia de Vasco Graça Moura vai troçando da moralidade ostensiva destes dias… “há quem escreva persistindo numas rilkeanas/ imagens delicadas, inflectindo os sentidos nas subtilezas/ de i-las cantando como se o verso fosse uma coisa pura,/ como se narrar fosse um hálito diferente/ cruzado com as coisas. a oposição das coisas. o caeirismo. deus.// eu prefiro a narração. os meus poemas têm cada vez mais/ essa tendência perversa de neles sempre acontecer/ alguma coisa a alguém num tempo e num lugar./ e se uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa,/ isso é uma citação desagradável. é de noite e na televisão// há um programa sobre lenine. tenho tanta pachorra para lenine/ como para gertrude stein. quero lá saber do proletariado/ e do campesinato e da alice b. toklas. nas fufas/ está tudo embalsamado como nos programas/ soft-porno da europa comunitária.// mas elas têm sempre uma cor desenterrada/ e um cabelo estranhíssimo a acinzentar o prazer./ será mais uma memória lunar de paris na escrita americana?/ outra textura cerosa a engrossar-lhes as feições?/ a noite cai e é quando sapho medita os seus enervamentos,// eu penso que é de passagem, uma circunstância de rosas/ a murcharem, ou de alusões na sua voz ladrada./ afinal só se sabe das que têm algum dinheiro e nunca foram novas./ «está tudo tão diferente, disse ela, os fados não perdoam/ e eu vou envelhecendo sem ronsard e sem lareira».”

Provocações ou sinceridades destas já não são admitidas nem aos versos, e então não estamos longe de ter de o ler às escondidas, admirando como pegava e revirava, dando as voltas mais inesperadas, brincando com os materiais biográficos, os múltiplos acentos e acasos do dia-a-dia, mas sem nunca trair aquele rigor de uma prosódia exuberante, que nos educa para captarmos as suas irregularidades, os momentos em que tanto eleva a temperatura como depois se abandona à existência profana e ao estado vulgar da linguagem.

Como assinalou João Rui de Sousa, este “desenvolto testemunho de uma experiência vária, sem perder a frescura de tons e o imparável da sua fluência”, consegue refazer a nossa percepção do tempo, que é sempre contrastado face aos resíduos de que nos servimos para erguer as esculturas que povoam a nossa memória. Morre e ama-se, diz-nos ele a certa altura, e, à medida que a juventude se vai deformando, o que fica “são canções de experiência”. Às vezes “palavras tristes/ encostadas à morte”, outras “minuciosos organismos” na terra sob a luz estremecendo, essa “música mordida”, sendo certo que “as rasuras deixam cicatrizes”, e que às tantas até se torna “doce o silvo da respiração/ quando o presente aos poucos se degrada”.

O que não falta são posições e ângulos, modos de desdobrar-se, entre a afeição, a luminosidade e a candura nuns momentos, noutros aquele embalo malicioso, desferindo estocadas brutais, remoques subtilíssimos, mostrando que se a poesia passa por efeitos de condensação, depois o seu alcance estende-se e determina essa composição que nos acompanha à medida que enfrentamos o instante actual. Nesse sentido, se nos é tão gratificante estarmos “na companhia dos que estão na plenitude das suas vidas e dos seus dons”, como assinala Eduardo Lourenço, sendo essa uma maneira de se estar menos morto, a obra de Graça Moura consegue fazer-nos sentir, natural e insolentemente, na companhia de muitos homens, como referia aquele ensaísta. Para lá da maturação do seu imaginário, esta propõe-se como um colossal intertexto, um mundo de vozes, de uma fluência prenhe de contrastes, e que acolhe o espontaneísmo tanto como a reflexão ponderada. Aqui, a contemplação abarca horizontes vastíssimos, tempos desfasados que se refazem, deixando uma tonalidade vivencial que, por si só, consegue comover-nos com a sua sumptuosidade ardente, dando sentido à exigência de ressurreição daquele ideal de uma cultura sem a qual a vida não chega a retirar das coisas o seu mais profundo gosto.

Se nos últimos anos vimos assistindo a uma deserção desses lugares e modos exaltantes, sobretudo por parte da juventude que, hoje, vem declinando o seu papel de abalo e destruição criativa e regeneradora, Graça Moura exprimiu muitas vezes o amargurado amor desses que viram “o amador a transformar-se em sombra/ a coisa amada a transformar-se em cinza,/ tétanos, podridões, desastres, tudo,/ todas as mortes e incestos, tudo/ o que foi vão e vil, a urina e esta/ pobre matéria de alegria póstuma,/ os lugares da loucura e da miséria,/ os retratos torcidos, tudo visto/ contado e dividido, já previsto/ por infames motivos”. Mas o seu testemunho não vai nunca no sentido de uma abdicação, pelo contrário. Sempre, o contrário. Encarnando uma poética e uma mitologia da metamorfose, servindo-se do exemplo da música, aplicou-se em fazer da sua obra um regime de orquestração, contraponto, fuga, sinfonia, uma “sinfonia concertante e desconcertante”, para nos servirmos de outra imagem de Eduardo Lourenço.

Dando passos que tornavam os próprios lugares audíveis, com aquela liberdade de tom e de movimento, passou como o próprio amor em visita, revolvendo tudo, revelando “um gosto de brincar com a sua erudição” (Lourenço), e traduziu tanto o esplendor como a dilacerada melancolia daquela vivência de sentido precário, procurando uma ordem onde os elementos aleatórios se combinam e assumem um efusivo alcance nessa memória ou fantasma que aguarda o leitor ainda sensível à corda imensa e tensa desta língua.

Como notava Eduardo Prado Coelho, “o que faz todo o interesse da poesia de Vasco Graça Moura é precisamente este jogo complexo e enredado, feito de cedências, recusas, medo, timidez e agressividade, em que o autor deseja atingir a mais serena evidência poética num estilo que poderíamos designar em termos vulgares de ‘como quem não quer a coisa’.” Assim, simula uma quase displicência, artifício que nasce de uma naturalidade espantosa, aliviando a dimensão retórica e a densa trama de referências e ecos que aqui se misturam ou afinam. O que lhe interessa é a cultura como uma imagem englobante do mundo. Por isso, Prado Coelho frisa que a sua poesia, tal como as suas traduções, “pertencem a um processo de apropriação de tudo (…) que parte de uma implícita desapropriação do próprio”.

E aqui vale a pena assinalar que, num poeta cuja ousadia e audácia profanadora nasce precisamente das suas devoções, daquela capacidade de trepar ao cânone como a uma árvore de frutos imensamente diversos, descascando-os para comê-los e andar depois com um ou vários caroços ao longo de dias na boca, as suas antipatias eram igualmente frutuosas. E se Pessoa não era santo da sua particular devoção, ganhamos muito em compreender melhor a sua frieza face ao poeta dos heterónimos. Neste ponto, deve destacar-se aquela que terá sido, porventura, a mais penetrante nota crítica entre as tantas leituras que a sua obra mereceu. Diogo Pires Aurélio nota como a poética de Graça Moura é de todo alheia a esse género de dispositivo modernista em que o eu se descobre sucessivamente um outro. “Na verdade, não é o sujeito que nela se transfere, em peregrinação por tempos históricos e enquadramentos esteticistas, para descrever o mundo: é o mundo de que estamos cercados que se revela todo ele feito de descrições, fragmentos de narrativas sobrepostas, onde só a literatura pode descortinar ou refazer um sentido. A par do sujeito, são também as coisas que se desdobram e dobram, se diferem e inferem, se explicam e implicam. Como diriam os gregos, tudo conspira.”

O fosso que separa Graça Moura de Pessoa é, por isso, uma denúncia de uma vertigem interior que, em vez de se dirigir para fora, de produzir uma imagem do mundo, se entretém com desdobramentos tão estilisticamente enfáticos quanto incapazes de resolver a dispersão de impulsos que a realidade atiça. Por meio desse expediente heteronímico, neutraliza-se o conflito diante de uma experiência que já não admite sínteses abstractas e radicais.

“O aparecimento de múltiplas personagens que mutuamente se representam e explicam tem, pois, lugar no interior de um espaço muito mais vasto, onde a analogia assume o papel de autêntico eixo em torno do qual circulam a natureza, a história e toda a experiência literária. […] É neste plano que a intertextualidade adquire um significado que vai muito para além habitualmente os comentadores reparam”, acrescenta Pires Aurélio.

O espanto diante do mundo não admitirá que alguém se limite a pedir que troquem uma nota, mesmo que de um valor elevado, tornando mais expressivo esse valor ao empilhar as moedinhas, procurando também assim deter da vida apenas o seu efeito nos sucessivos e ligeiramente distorcidos reflexos do nosso próprio rosto. A exigência maior está no efeito de concentração das polaridades irresolúveis, colocando-se cada um perante a tradição como numa arena. Pois, como nos diz Graça Moura, “o amor é agressivo/ e tem a ver com tudo quanto toca, nunca há/ modelos inocentes.// isso foi muito limpo. observar, medir, tocar as pedras,/ recordar m. c. escher, pensar uma grafia cautelosa/ e multilateral, coisas difíceis de devassar, afectivas, incrustadas,/ no alçado rigoroso que fomos provocar-lhes.// poderia dizer-se que não fizemos nada/ a não ser povoar o mundo imaginário/ e que isso é fabricar o real, mas de um só lado, triste/ como se devesse durar uma invencibilidade das coisas.// todavia a observação tem uma qualidade modulante/ que a linguagem poética documenta; então notaste/ que a observação é um trabalho político/ que toda a observação modifica a realidade (a matéria da música)// todas as outras áreas: a ternura, estranhezas miméticas/ os labirintos do sentimentalismo crítico. etc.) há de facto/ um angelismo construtivo, pressuposto versátil/ de vários actos que pensamos livres.”

Assim, e por fidelidade àquela “furiosa paixão pelo tangível”, Graça Moura acolheu em si esse elemento de expansão ilimitada, sem se representar como um sujeito dividido, porque o sujeito continua a ser apenas um reflexo do mundo, e o que importa é cobri-lo, traduzi-lo em linguagem e feri-la depois de distâncias, ausências, transferindo a sensação para esse “discreto halo musical” (F. Pinto do Amaral), essa confiança de um ritmo que cresce e alcança o ponto mais alto no momento em que está prestes a dissolver-se – a música que é o mais irrecusável e, por isso, trágico dos elementos, a música que nos transporta e eleva apenas para depois nos abandonar, de forma que só nos resta despenharmo-nos nas nossas vidas, como nas dos outros… “e há sempre uma história das pessoas ouvida com o que somos,/ uma narração a prolongar a acústica dos sóis interiores, destinos/ quando a tarde esmorece, por exemplo, aos// sessenta e cinco anos, clara haskill caiu na plataforma/ da gare de bruxelas. veio a morrer/ das complicações da queda. mas antes já tivera// problemas da coluna e da vista, já/ tivera de fugir da alemanha. estas notas/ vêm na capa do disco em que ela, a intermediária// de mozart, toca o concerto em ré menor, numa aura/ de densidades graves. você está deitada no sofá/ a ler um livro, quando eu lhe digo isto. não// sei se presta atenção, ou se apenas sorri como a música requer/ e a haskill desejaria. a música é sempre autobiográfica/ para o ouvinte, uma acelerada angústia desmedindo o que// ousávamos saber. e uma íntima aliança com a luz/ e o inominável da experiência fazem/ o sublime dessas marginalidades da vida.”

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