Augusto de Campos. O rosário herético dos poetas
Amanhã, o poeta com o mais longo e vasto percurso e que é, ao mesmo tempo, o mais entusiasta e jovem da nossa língua, completará 92 anos. Um dos elementos fundadores do movimento da poesia concretista brasileira, na década de 1950, Augusto de Campos tornou-se um elo crucial para fazer sobressair na literatura aquele vigor e severidade de uma ética que opera por meio de recusas, e, através do seu extraordinário trabalho como tradutor, foi erguendo um concerto de vozes em desacordo com a sociedade ou com a vida.
Há frases que nos dão cabo dos dentes, sons que nos perdem para impressões de fundo sugerindo imprecações fabulosas contra a narração exausta dos dias que correm. Há impressões tão lestas que nos fogem, se atam num instante e desatam no outro, florindo num alcance imprevisto. E há um risco na vigília que se fixa nessas fugas, do mesmo modo que há imagens que arruínam a nossa percepção. Numa época em que a amaldiçoada vulgaridade se intromete em tudo, é preciso escapar do trajecto proposto, e mesmo dessas estradas secundárias que acabam por remeter para ele, e seguir ao invés a corta-mato, em contracorrente. Mas antes que tenhamos podido dar-nos conta de como a poesia é a relação de tudo aquilo que se colhe com um grande risco e só depois de se desenvolver uma ética da recusa, primeiro foi preciso entender a diferença crucial entre esta e todas essas formas de toscos galanteios e do patetismo emocional ou essa queda dos intelectuais pelas delícias dos seus pensamentos abstractos.
A poesia começa, desde logo, por ser avessa e tornar-nos alérgicos a todo o tipo de facilidades, instigando uma verdadeira repulsa por aquela ornamentação forçada que trata de falsificar a beleza, deixando esta de ser um ganho difícil, uma exigente reelaboração das hipóteses dadas, para se tornar outra função decorativa. Assim, durante muito tempo tive a sensação de que sempre que me deparava com aquilo a que vulgarmente chamam poesia tinha de lutar contra mim mesmo para não cair num estado de estupor. Sentia a maior das resistências àqueles modos, uma espécie de irritação que logo dava lugar à náusea, tendo a impressão de que estava a ser exposto a algo desgraçadamente em esforço, que me aborrecia e enfastiava, especialmente se vinha na forma rimada. Sentia uma contracção perante tudo o que me surgisse como desnecessariamente enfático, solene, e, como Gombrowicz no célebre ensaio “Contra os poetas”, parecia-me que os versos recaíam invariavelmente numa cantilena monótona, nesse registo continuamente sublime. Como ditos emplumados, ali o ritmo e a rima sinalizavam logo qualquer coisa de postiço, que actuava como um soporífero, levando-me a considerar que não há nada mais longínquo do deslumbramento do que esse estilo amaneirado ou afectado que usam os poetas, sobretudo quando falam de si mesmos e da sua Poesia.
Tive sempre a sensação de que esta arte tinha demasiada tolerância para com certas formas de mistificação e snobismo, falsidade e mania, fórmulas para se abusar da tolerância e da boa-vontade geral, e pareceu-me que, tal como sinalizava Gombrowicz, o poema havia inchado até assumir proporções monstruosas. Havia-se tornado, não apenas um regime paralelo ao das ideias e frases feitas, como também uma missa estética, e parecia-me que o polaco tinha toda a razão ao considerar que, de todos os artistas, “os poetas são quiçá aqueles que caem de joelhos de forma mais persistente – rezam de forma mais fervorosa – são padres par excellence e ex professio, e a Poesia, neste sentido, torna-se simplesmente celebração”.
Os poetas pareciam-me seres que se serviam de todas as escusas para se retirarem dos aspectos mais dolorosos da convivência artística, criando as suas zonas de segurança, reservando-se e às suas sessões a um regime de exclusividade, criando uns para os outros, não procurando outra coisa senão estar em contacto com outros convertidos e fiéis, outros seres delicados e que estavam igualmente investidos nesse regime ritualista que exclui todo o confronto. Os poetas e a própria Poesia estavam a tornar-se uma realidade cultivada em estufas e sob condições excessivamente controladas, e o estilo que se afinava naquele regime coral buscava necessariamente entreter um grupo cada vez mais homogéneo, excitar sensibilidades num mero ensejo de requinte que acabava por produzir uma experiência cada vez mais desfasada das coisas, blindar um núcleo cada vez mais estéril, incapaz de se confrontar com a diferença e a própria realidade. Era uma religião de canários desses que, mesmo enfiados nas suas gaiolas, se expostos na varanda, mal entrassem em contacto com espécies livres, não se livrariam de contrair alguma gripe e perder de súbito o pio, morrendo sufocados. Como vincava Gombrowicz, “o estilo nascido entre fiéis da mesma religião morrerá em contacto com uma multidão de infiéis”. Tal como ele, entendia que para se romper com esse mundo fictício e falso é preciso que qualquer forma de arte ao invés de buscar um confronto com um grupo de pessoas afins, deve antes robustecer-se numa relação com o inimigo e num confronto com o inimigo.
A poesia que hoje mais se celebra, nas suas combinações insistentes, contenta-se em alargar um dicionário ao mesmo tempo pobre e obeso, engordado à base de picuinhices e frívolos jogos de linguagem, mas é cada vez mais omissa em relação aos termos capazes de gerar sobressalto e suportar esses delírios que enfebrecem os sentidos e o próprio sangue. É um diagnóstico recorrente esse de que a poesia vive trancafiada em exuberâncias perras, venerando uma linguagem sem correspondência com este mundo ou outro qualquer, e que a metáfora se tornou um modo desenfreado de se aquecer a voz para um canto que nunca rasga uma perspectiva mais vasta. De resto, algo que se tornou característico daqueles que usam o título e vivem da representação de uma certa elevação é estarem cada vez mais uns em cima dos outros, num regime de isolamento em que “tudo se torna exacerbado e até mesmo os poetas medíocres incham de forma apocalíptica e os problemas triviais assumem proporções exorbitantes” (Gombrowicz).
A este respeito, basta ver todos os melindres que se causa interrompendo o ridículo ambiente de publicismo que cerca a poesia, escrevendo uma crítica que se ocupe na demolição de um qualquer desses livrinhos tão incensados pelos pares. Tudo isto é um sinal de como essas manifestações à volta da poesia revelam, afinal, como esta está dominada por um sentido de perda, repetindo-se até à exaustão com o simples fito de “vazar o vácuo no vazio”, nesses recitais e elogios públicos ou prémios, tudo simulando uma aparência de triunfo, numa pompa que não esconde como, apesar da quantidade absurda de poetas que continua a reclamar a importância de tudo o que escrevem, a poesia se encontra há muito numa situação catastrófica. E isto é um diagnóstico que, de resto, poucos contestariam, a não ser para sublinharem os seus próprios casos enquanto miraculosas excepções à regra.
Face a este panorama, ganha ainda maior relevo uma figura que surge nos antípodas de toda esta aleivosia agastante: Augusto de Campos, poeta que foi decisivo para me reconciliar com os sinais ou marcadores mais identificáveis do discurso poético. Como o próprio foi sinalizando tantas vezes, e, em 1987, tornou explícito ao publicar "Linguaviagem" (livro no qual aparecia escrito na quarta capa “crítica via tradução”), o intuito era romper com o coro, abrir margem nas próprias margens para uma flagrante sensibilidade nova, um espanto que resiste e aceita o confronto, a vida que há na dissenção, que reconhece o quanto a vaia começa por ser a mais franca homenagem, e que, assim, por meio de uma série de recusas, estabelece uma diferença e uma forma de encanto mais rude e profundo, que se arma e riposta às tentativas de rechaço com um fogo seu.
Nas últimas décadas, Campos lançou-se numa pesquisa, colhendo ao longo de três milénios de poesia e entre quase centena e meia de autores exemplos de uma astúcia expressiva invulgaríssimos, erguendo um “concerto de vozes dissonantes, minoritárias”, vozes que através dele encontram uma passagem para a língua portuguesa sem perder a sua vitalidade tempestuosa. Assim, como a crítica tem notado, “a partir desse percurso prospectivo que pode estar num único verso e que faz parte do ritmo do conjunto, existe uma invenção contínua da margem”.
Muito cedo, Augusto de Campos deu-se conta de um profundo desinteresse que caracterizava a poesia que se continua a fazer após a explosão modernista, e que mais pareciam operações de limpeza e restauro da ordem anterior, um recuo face aos ganhos das vanguardas, e até uma rendição dos poetas aos enredos burocráticos do prestígio e a esquemas fronteiriços. Assim, reflectindo sobre o período que antecedeu a formação do movimento da poesia concreta, ele lembra que “enquanto os intelectuais do primeiro mundo eram basicamente monolíngues e autossuficientes, nós, do terceiro, assimilando vários idiomas, fomos devorando tudo e queimando etapas rapidamente com a pretensão de buscar uma síntese fulcrada no critério poundiano da invenção”. Com um programa de tributo e de ardor, levando a efeito a noção de Maiakóvski de que “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”, Augusto de Campos foi sempre “filtrando o sal da linguagem”, e os comentários que acompanham o seu trabalho transcriador são verdadeiras salinas que ficam do ânimo com que desbrava os sinais mais fulgurantes e dispersos desses espíritos inssurrectos, implicando-se da forma mais ardilosa com vista a não trair nem deixar escapar a integridade ética e estética dos textos originais, admitindo sumptuosas variações e compondo uma espécie de rosário herético. Deste modo, vemo-lo sempre dedicado a essa radiação que dá sentido ao menor detalhe, e na afinação de no respeito por esse “sinal de menos” (Eduardo Sterzi) que ele procede, reatando aqueles sentidos que vão ficando soterrados na matéria fossilizada dos idiomas. E assim o achamos aferrado, este poetamenos, como insecto à beira do invisível, sorvendo a gota mais viva da pulsação intemporal, e recosendo o que parece uma miragem, com essa linha que mal se vê, um fio de pesca, tenso, capaz de arrastar uma vida que se esconde e prefere que seja sentida apenas a sua luta, erguendo uma vaga entre os sons, com o próprio corpo cerzindo o mar através do pulso achado entre poças num espaço e num tempo desarticulados.
Num dossier dedicado ao poeta assinalando os seus 90 anos, o crítico Eduardo Jorge de Oliveira lembrava que, na linhagem que cada poeta constrói para si, deixa de haver uma distância cronológica tão grande e o que sai reforçado são os vínculos entre aqueles que actuam por meio da recusa nos mais diversos períodos históricos, e isto porque, “em primeiro lugar, o poeta é um inventor do tempo”. “A partir do poema emergem temporalidades na contracorrente das disciplinas cronológicas e evolutivas, pois as seleções, traduções e montagens imprimem acelerações e desacelerações, projetam o passado no futuro, suspendem o presente ou o remontam de modo combinado com outros tempos.” Este crítico vincava ainda como “a elaboração de margem é um cálculo da imaginação”, e que esta “pode ser infinitamente mínima, pequena, e mudar de forma na medida em que se monta o tempo com outros poemas a partir de um jogo”.
“A partir dessa prática”, adianta, “é possível se remeter a um termo alemão que foi caro a Walter Benjamin, Spielraum, que significa simultaneamente ‘espaço de jogo’ e ‘margem de manobra’”. Ora, se “o sujeito poético não existe sozinho, mas, pelo contrário, habita intervalos específicos entre invenção e memória, intervalos que só a palavra pode criar”, Augusto de Campos foi um verdadeiro criador de passagens, alguém que se coloca diante de um texto, e que, admirando as possibilidades que nele se estendem, desenreda o próprio tempo e ressalva antes os elementos que fazem da língua uma via, um meio de viagem, e o intenso esforço do seu trabalho buscando cruzar diferentes acessos, suando, pingando e medindo o fundo do abismo, faz dele um maestro que vem a insurgir-se pela compreensão de tudo o que falta, alguém que traduz para consertar um vazio, estender pontes, crivando o percurso daquelas marcas estranhas que prendem a nossa atenção num fundo mais vibrante e que se destaca face a esses "pontos sensíveis onde a crítica se limita a conservar e a desconversar". E se ele está tão atento e empenhado em fazer emergir um trânsito entre sinais de ruptura, em resgatar um fulgor diverso, nesse aspecto está muito próximo de Fernando Pessoa, com quem Augusto estabeleceu uma correspondência bastante frutuosa, procurando emergir dessa encruzilhada onde a vida se mostra mais “prolixa”, como “um mendigo bêbado/ Que estende a mão à sua própria sombra"... A partir de uma tradução dos poemas do Rubayat na edição inglesa, de Edward Fitzgerald, encontrada no espólio do poeta português, e que sobre ele terá exercido um fascínio que deixaria marcas em tantas das experiências que ficaram na arca, Augusto rende esta versão: “Ah, vem, vivamos mais que a Vida, vem,/ Antes que em Pó nos deponham também;/ Pó sobre Pó, e sob o Pó, pousados,/ Sem Cor, sem Sol, sem Som, sem Sonho – sem.”
O regime de transcriação a que se entrega há muito, levou o poeta brasileiro a reconhecer que a “poesia é uma família dispersa de náufragos bracejando no tempo e no espaço”, e, no texto de abertura do livro “Verso, Reverso, Controverso”, explica essa angústia de um homem que se vê desamparado no seu tempo, e recorre a Pessoa uma vez mais para notar que, “com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou quando menos, os seus companheiros de espírito?”
Cabe aqui, ainda, assinalar esse outro título de um volume de ensaios de Augusto de Campos, originalmente publicado em 1978, e que impõe o foco sobre obras de ruptura de escritores brasileiros, e que depois de se ter chamado “Poesia Antipoesia Antropofagia” na primeira edição, mais de 35 anos depois voltava às livrarias acrescido de uma secção “… & cia.”, com novas incursões “errático-críticas” publicadas nesse período. O sentido de reapropriação que domina toda a obra de Augusto, recolhendo achados e saltos fulgurantes e cumulando esse miolo de pão que a sua inteligência achou em migalhas dispersas pelos caminhos, visitando nos períodos mais desencontrados um bom número de almas para as re-situar no seu próprio tempo e espaço, torna muito claro o quanto o poeta sente falta de se achar acompanhado para não ficar prisioneiro da sua época, para se evadir dos limites e do resumo desesperante feito pelos nossos contemporâneos, com as “velhacas velharias que nos impingem” ao longo das nossas vidas. Augusto de Campos busca, deste modo, essa irmandade no tempo, assinalando como aqueles poetas primeiro resistem e escapam ao edifício sufocante dos dogmatismos e não cessam depois de investir contra ele, sendo que, nesse empenho, provam ser “mais irmãos e mais próximos que a diluente maioria dos literatti que nos cercam”. Outro traço distintivo desta obra é a imensa generosidade que caracteriza o seu esforço crítico, uma espécie de devoção que faz de Augusto de Campos um especialista em arrombar falsas portas e obstáculos, essas arrumações que sinalizam o idiotismo historicista (“os futurocratas passadófobos, que dividem a história em antes e depois de si próprios, não passam de medíocres narcisistas que já vão ser enterrados no próximo passado do futuro”), propondo em seu lugar formas de dissecação radiosa, e trazendo de novo à vida e ao nosso convívio expressões urgentes, noções que desmontam a própria morte. Nasce, assim, uma consciência que vinga actuando nas margens, a daqueles que se põem a escutar entre as partes mais singulares ou raras de cada idioma os momentos em que a gramática quase range e alucina, quando o seu sistema circulatório produz acidentes reveladores e aberturas novas. É importante ainda notar como as traduções de Augusto de Campos surgem acompanhadas desses comentários que traçam para nós um mapa das soluções recusadas e daquelas a que, com o seu fabuloso instinto para buscar o nexo mais inquietante, fazem dele um explorador tão atento e escrupuloso no que toca aos elementos formais da palavra, a essa temática de timbres que lhe permite ser um cultor extraordinário dos aspectos que irrigam de musicalidade vital um verso ou uma frase.
Nos seus esforços de arqueologia, na vivissecção de abalos ocorridos há muito noutros idiomas, mais do que defender o valor dos clássicos por igual, Augusto ilustra esses elementos de ligação entre o novo e o antigo, esse refluxo intemporal de oxigénio, deixando à vista o vínculo que há entre erudição e imaginação, como um e outro se actualizam. Tudo converge, as experiências mais remotas e algumas que estão em processo nos nossos dias, sendo na sua maioria ignoradas para dar lugar a coisas de segunda ordem, tudo isso encontra a sua proximidade neste ouvido, capaz de escutar a menor variação no ímpeto com que alguém põe um pé diante do outro a uma larga distância, sentindo intimamente o seu estado de comoção e o balanço que leva. Isto faz de Augusto de Campos um batedor ilimitado, que não guarda segredos, mas partilha esses assombrosos dons linguísticos que lhe permitem seguir um rastro mesmo séculos depois, mesmo se este parece já um tanto apagado, e estudar as inflexões no seu respiro, remontar o pavor e os impulsos a que se entregou. “A minha maneira de amá-los é traduzi-los”, adianta Augusto. “Ou degluti-los, segundo a Lei Antropofágica de Oswald de Andrade: só me interessa o que não é meu.” E explica então como tradução no seu entendimento nos leva ao conceito de “persona”, que é um quase heterónimo. “Entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, corpo por cor. Por isso nunca me propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto.”
Trata-se de um projecto poético de uma ambição e audácia sem par nos nossos dias, e que faz deste autor o crítico mais profundo que temos, erguendo e cruzando esses estrondos num rumor que começa a penetrar o edifício inexpugnável. Foi o seu exemplo que me fez ver como muito do desgosto perante os aspectos mais postiços do regime de canto coral poético e que me tinha tornado resistente a tudo o que soasse a antigo, era apenas um equívoco, uma vez que confundia o antigo com aquela afectação do discurso e o deleite ritualista com as formas que fazem do passado um culto mórbido, precisamente por este aparecer como estático e irrefutável, e, também por isso, inofensivo. Ora, no compromisso da sua atenção aos elementos mais frágeis de tudo o que passa pela língua, no modo como emenda, desemenda, verte, reverte, sem inversões canhestras, ao construir palmo a palmo essa catedral que nada tem de imóvel e que honra a visão de um outro, Augusto de Campos fez-me compreender que o novo e o antigo se animam e restituem entre si um mesmo eco anterior, captando a passada num chão que cede em qualquer época, a cada verso, cada estrofe, tentando recuperar o efeito de propagação acústica bem como os restantes sinais que indicam e compõem já um destino, esse que deve estar inscrito e animar cada instante de um poema. Assim a tradução mostra-se a forma de compreensão mais profunda de um texto, pois está na perda como no ganho, na forma como "a atenção lenta desenrola" (João Cabral de Melo Neto) cada plano em que se detém. E esta não pode simplesmente valer-se de uma experiência anterior para resolver um embate inesperado, mas deve precipitar-se e aos seus sentidos face a essa vertigem, desesperar antes de se dar por satisfeita com soluções apressadas, tomadas de empréstimo.
Augusto de Campos rejeita qualquer selo de autoridade que ele mesmo não tenha verificado. Prova de cada frasco, educa e refina a sua percepção, desenvolve essa habilidade terrífica que retira estímulo e ânimo a cada obstáculo e dificuldade com que se depara, e que o instigam a ser criativo nas suas propostas, ao ponto de entender que a própria desistência consegue ser bem mais fiel do que um resultado frio. Também por isso recusa oferecer-nos essas fórmulas de substituição literal, essas traduções que acabam por frustrar a matéria vibrátil que se articula a partir de sensações alheias, “em que os sentidos e o entendimento se povoam de relações entre coisas de aparência estrangeira umas às outras, ligando o familiar e o estranho” (Goethe). Ele entende que a restituição só pode acontecer se os sons entretecerem entre si a sensação do desabrido movimento de uma alma, sacudindo o idioma, causando nele uma impressão rara e reflectida. Este movimento só pode ser alcançado criando “um outro corpo vivo, que simulará um crescimento orgânico, sempre com o olhar contido, guardado, alucinado, no outro corpo vivo, respirando não por si mesmo, mas pela proximidade do outro, pela sua afinidade indemonstrável com ele”. Isto é assinalado por Maria Filomena Molder num ensaio recolhido no volume “Semear na neve” em que cerze uma série de leituras de autores como Walter Benjamin ou Paul Valéry, entregando-nos o mais profundo dos ensaios escritos entre nós sobre a arte da tradução. Neste texto, a autora demonstra como aqui o ideal passaria por dominar de tal modo “o mar da linguagem” que se consiga restituir “todas as retículas, redes, elos, enleios, liames, tudo o que forma esse tecido”, e o faz “sem restos, sem costuras, sem falsas bainhas nem remates disfarçados”… Isto só é possível através dessa obstinação que leva o tradutor a empenhar-se de forma a resgatar as cadeias reverberantes, a mesma intensidade, a complexidade da trama que transporta o sentido de um texto tratando-o como um organismo de ressonâncias indissociáveis e infatigáveis. Trata-se, por isso, de uma espécie de “acto mágico”, no entender de Molder, esse “transporte de um corpo vivo em laboração contínua”, de tal modo que é preciso não só zelar pela sua sobrevivência, mas assegurar que, à sua passagem, as percepções se mantêm como que eriçadas, como se fossem estas a ser arrastadas pelo seu esplendor, como se este ser exigisse que se excedessem ao longo da travessia. Seria como providenciar o transporte de um cetáceo através de dois oceanos separados por uma massa continental, uma operação que obrigasse a ir passando água, mantendo-o fresco, com uma grande delicadeza e atenção, de modo a que a humidade e o hálito fossem restabelecendo essa harmonia marinha. Seria, assim, possível trazer um corpo imenso do seu elemento, fazer a distância mais agreste, sem perder elementos essenciais, mantendo a vitalidade original, o fulgor, e compensando o que inevitavelmente se perde pelo caminho e com o tempo. Mas, para isso, primeiro é preciso que quem o faz esteja dolorosamente ciente da dificuldade da tarefa, dos desafios que implica esse tráfico quase impossível. Isto aguça o engenho, obriga a invenção a superar-se, não se ficando por meras correspondências, mas forçando o lençol de uma língua a cobrir o fantasma da outra. Assim, o tradutor cuida não só da perturbação original, mas desse novo lugar que se cria no intervalo entre os idiomas, e isto só é possível se puder cuidar da eternidade em ambas as direcções.
Não basta passar, por isso, o nariz sobre o abismo, nem mergulhar nele o cantil e tomar um trago imaginário. É preciso estar consumido pela severa sede que leva alguém a ter a língua colada ao paladar, dominada por uma ardente sede de expressão, colocando todo o seu peso na busca da maior afinação de elementos possível. Essa é a sombra sempre entornada de quem mais se admira nos outros, de quem é mais vivo confiando nos instrumentos que levam aquele que revela tanta experiência em seguir outros a acabar por adiantar-se-lhes. O tradutor parece ir por fora, mas, afinal, prova ser o mais íntimo, estar mais dentro, cair como morto dando por si num outro lado renascido. Ele fala-nos de limites, de não se abdicar de qualquer sinal, ser inteiramente premonitório, levando a coisa até à consequência que ela mesma exige. Por outro lado, ele é o depositário ao mesmo tempo de um anseio e de uma nostalgia, e acaba por intuir os elementos de passado e de futuro que há em todo o presente.
Esta foi a lição que nos ofereceu Santo Agostinho ao sinalizar a íntima ligação dos diversos tempos do tempo, e servindo-se, para esse efeito, da rememoração de um poema para explicar como funciona a eternidade: “Antes de começar, o poema está na minha antecipação; assim que o acabei, na minha memória; mas enquanto o digo, está a estender-se na memória, pelo que tenho dito; na antecipação, pelo que falta dizer. O que sucede com a totalidade do poema, sucede com cada verso e com cada sílaba. Digo o mesmo da acção mais longa de que faz parte o poema, e do destino individual, que se compõe de uma série de acções, e da humanidade, que é uma série de destinos individuais.”
Tendo isto por base, é fácil entender a forma como o tradutor participa desse destino que lhe parece ser alheio, acabando por extrair a sua identidade dessa memória que se partilha e depois se estende ou desenrola segundo um outro universo. Isto diz-nos que traduzir é criar num campo de escolhas que estão limitadas à partida e nunca inteiramente satisfeitas à chegada, daí a sua irresolução tão pregnante, e daí também o rigor da "orquestração gráfica" por que se bateu Augusto de Campos, procurando desenhar o embalo da alma nos seus sucessivos arroubos, forjando um novo corpo ouvido num outro idioma, mergulhando lá fora, para chegar mais fundo dentro de si mesmo, do seu idioma. E isto por via do que ele chama "intradução", essa forma de resgatar um texto dando-se todas as liberdades na captura de uma mesma visão, na percepção fulgurante de uma realidade comum. E recorde-se que, como Guimarães Rosa vincou, “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
O que Augusto de Campos faz é atirar-nos nesse meio, no olho da coisa, na alucinação espantosa, na irradiação em que todas as hipóteses merecem ser pesadas e sentidas, antes de se extrair um resultado derradeiro e, portanto, fatal. Nesse balanço do que insiste, investiga, radicaliza as hipóteses, desfigura para ser mais fiel no retrato. Assim, busca no avesso, examina em contraluz, para conhecer a diferença e a distância que dá mais sentido à intimidade com o original. Como se esticasse a pele musical de uma composição para perceber o que assume mais relevo na sua elasticidade, o que ela permite e qual é o seu verdadeiro alcance. Mas fá-lo sem rasgar ou romper, sem perder de vista nem a forma nem a alma, mas consolando uma na outra. Deste modo, alarga-se o raio, a dicção expande-se, inspirada, acicatada. Sendo o perigo maior que um texto se arrume e ceda a uma forma estagnada, imóvel, deixando de produzir vertigem, de obter o seu eco ou reflexo a refranger-se numa distância cada vez maior. No limite trata-se de fazer cair o firmamento e as constelações, mesmo as só descobertas ou avistadas muito depois, entre aquele desenho universal através do qual o texto se predispunha a recolher o pó de todas as estrelas.
Somos o desejo de além mais do que o último passo em que ficámos, e Augusto sempre foi esse filho fiel à dedicatória que fez, no livro “Balanço da Bossa e Outras Bossas”, ao pai Eurico de Campos, “pintor e compositor, pianista e sambista”, e que o ensinou: “a passar toda a minha vida/ a defender causa perdida”. A sua obra são como passos perdidos ecoando esse desejo de expansão e desdobramento, e, deste modo, a sua sombra sente-se mais como um ritmo persistente, absorvendo e reavendo outros prismas, experiências, tonalidades, ânimos e entusiasmos. Uma revolução que não se cansa, não cede, não se desilude ou decepciona, pois percebe que não há propriamente um paraíso estático, mas é o próprio movimento e o balanço que nos dá a sentir como o horizonte ferve de imagens, gera essa miragem que instiga a vida, acalora o sentido, não deixa que ninguém se encerre num feito ou se adie sine die, perdendo a capacidade de relacionar-se com os outros. A poesia é, por isso, e como outro dos seus leitores notou, a fiadora de uma promessa de um paraíso que se esquiva, e que vale mais como utopia.
Noutra versão colhida dos Rubayat, Augusto vinca: “Inferno ou Céu, do beco sem saída/ Uma só coisa é certa: voa a Vida,/ E, sem a Vida, tudo o mais é Nada./ A Flor que for logo se vai, flor ida.”
“O moderno contenta-se com tão pouco”, disse Valéry. E Augusto de Campos fez-nos ver como o que mais interessava na modernidade era a sua proposta de convulsão, como não pretendia chegar a uma fórmula final, mas sobretudo indispor, apurar o elemento inquietante que é mais expressivo da condição humana. Interessaram-lhe sempre mais os intraduzidos e os intraduzíveis, “os que alargaram o verso e o fizeram controverso, para chegar ao reverso”. Parece um jogo de palavras, e é, mas um jogo que nos prepara para o resto, para não nos ficarmos pela literatura, porque nada disto serve de muito se nos ficarmos por aqui, se não for uma compreensão e um embalo vital. No final do prefácio “Antes do Anti”, do livro “O Anticrítico”, lê-se: “a poesia é cor, é som, é fracasso de sucesso, e não passa de uma conferência sobre nada”. E é preciso chegar ao nada como reverso, dar a sentir esse buraco que ordena a vida ao seu redor, e impõe um sentido de urgência, um apetite pelo que enriquece de cor e som para que a contemplação nos entregue a esse tempo que não é um mero resíduo que se esgota, para que se possa ancorar os sentidos nos aspectos eternos, e tudo não se torne um motivo de renúncia a esse febril sentido único que nos cabia a nós despertar. E é para chegar aí mais depressa, aprendendo com os outros, com o que já foi feito antes e melhor, que nos viramos para a poesia, essa síntese esfuziante que nos treina na “ordenação da informação para que o próximo homem ou geração possam achar o mais rapidamente possível a parte viva dela e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos”.
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