Henri Lefebvre - Toda a estupidez do mundo





Depois do monumental Crónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge – e de realçar que apenas o 1º volume foi lançado –, a BCF Editores adopta agora, com As Peças que Faltam, um tom menor, como se depois da exuberância do primeiro fizesse falta algo mais evanescente, mais periclitante – uma breve nota depois de tempo, um pequeno arabesco desenhado na margem de um quadro, algo à beira do desaparecimento. É interessante verificar, aliás, o desenho preciso que é dado a ver com os poucos livros editados até ao momento pela BCF: os livros de Charlotte Delbo, de Carl Seelig, de Kluge e, agora, de Henri Lefebvre são verdadeiramente inclassificáveis, não no sentido do império da ficção, que vê na mistura de géneros a sua apoteose, mas nos pequenos deslocamentos que consegue efectuar. De Henri Lefebvre – que não é o conhecido filósofo marxista, mas um poeta francês –, com tradução de Ricardo Nicolau, As Peças que Faltam consiste exactamente nesse tom menor, sem qualquer tipo de pretensão, eivado de um olhar melancólico, sombrio, mas também com aquela alegria e aquele riso que apenas o desespero e a angústia tornam possíveis. Em pouco mais de 90 páginas, o poeta francês chama a si um ofício modesto – e trata-se efectivamente de um ofício, de um trabalho, completamente avesso a qualquer musa, como se cartografasse do exterior o campo literário: tornar-se um estranho contabilista do mundo, incumbido da tarefa de listar todo um conjunto de obras que, por vários motivos, desapareceram sem deixar rasto, permaneceram inacabadas ou nunca chegaram a existir (projectos que nunca passara disso, acima de tudo). Não seguindo nenhuma ordem aparente – e haverá alguma que não seja arbitrária? –, misturando várias expressões artísticas, da arquitectura à literatura, passando pelo cinema ou pela pintura, colocando lado a lado informações factuais e pormenores desconcertantes – como aquele onde nos informa que “o quarto de Tintim não aparece em nenhum álbum de Hergé” –, As Peças que faltam é algo da ordem do inventário, com a aparente neutralidade que este tem. “Trans-Europ-Express de Alain Robbe-Grillet, cine-romance inacabado • As Cartas de Proust rasgadas por Marie-Laure de Noailles (seis anos) • O “Canto Sétimo” de Maldoror • O Caminho de Sèvres de Corot, desaparecido no Louvre em 1998, nunca foi encontrado • Em 1940, a Gestapo saqueia o apartamento parisiense de Saint-John Perse e destrói os seus manuscritos” Há sem dúvida um riso selvagem que se liberta desta enumeração meio irracional, meio caótica, e que diz respeito a este disparate que se insere no seio dos assuntos humanos, como se a história mais não fosse que um amontoado sem sentido de acaso e contingência, de objectos desaparecidos e de outros que, sem razão alguma, perduram – não havendo nenhum tipo de superioridade tanto da parte de uns como de outros. E este gosto por um tom neutro, pela lista na sua forma anódina, por essa contabilidade que se limita a enumerar – rompendo constantemente a lógica de que parte, no entanto –, aproxima este pequeno livro de Lebevre de um certo Jorge Luis Borges. De facto, perante este conjunto de obras que desapareceram ou que nunca tiveram existência, que nunca passaram da sua possibilidade – uma das palavras mais repetidas é, sem dúvida, “inacabado”, ao lado de “destruído”, e não há praticamente página que onde não venha mencionado o fogo – podemos pensar na famosa biblioteca de Babel, que Borges dizia ser equivalente ao universo. E tal como no autor argentino, em cuja biblioteca figura o impossível e o possível, para além de todos os livros que existem, também em Lefevbre temos que nos haver com tudo quanto desapareceu sem deixar rasto, tudo quanto nunca passou de um projecto ou ficou inacabado – e isto é, sem dúvida, o mais difícil. Esta pequena passagem de Borges é, a este nível, ilustrativa. A biblioteca tem tudo, inclusive: “a história minuciosa do futuro, a autobiografia dos arcanjos, o catálogo fiel da biblioteca, milhas e milhas de catálogos falsos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o Evangelho gnóstico de Basilides, o comentário a esse Evangelho, o comentário ao comentário a esse Evangelho, o relato verídico da tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, o tratado que Beda poderia ter escrito (mas não escreveu) sobre os saxões, os livros perdidos de Tácito” Lefebvre é, a este nível, bastante mais soturno que Borges, mesmo que neste último a explosão das possibilidades, esta enumeração demente, tenha uma razão de ser bastante sombria – a Biblioteca contêm todas as combinações possíveis dos símbolos ortográficos, esvaziando o mundo de sentido, cujo centro está em qualquer parte mas a circunferência, essa, permanece absolutamente inacessível; e o riso que se solta deste pequeno conjunto de páginas não é, como em Borges, aquele que vem abalar os nossos conceitos, mostrando a festa do pensamento, mas aqueloutro, nervoso, sitiado, índice de um mundo todo ele “som e fúria”, que nada significa. “Os manuscritos e livros de Theodor Mommsen, desaparecidos no incêndio da sua casa; o tomo IV da sua História Romana permanece inacabado • (....) Bombardeada quartenta vezes, quarenta vezes reconstruída, Belgrado perdeu quase por completo o seu carácter arquitectónico original • (...) o nome do imbecil que interrompeu a vida de Roland Barthes e o romance Vita Nova do autor atropelado • Uma mala de viagem de Isabelle Garron, roubada em 1997 em Marselha, na qual se encontrava o manuscrito de um romance sem título” Que ao lado de acontecimentos históricos surjam catástrofes naturais (como inundações, tempestades, fogos), pequenos acidentes – o filho de Cézanne que abria buracos nos quadros do pai, no lugar onde via janelas –, uma quantidade imensa de destruições que parecem acontecer sem causa determinada, é índice desse disparate que, como um deus antigo, parece reger desde sempre os assuntos humanos. Fazendo com que o olhar de Lefebvre venha carregado, não de um lamento pelo que desapareceu ou de um gesto excessivamente animado pelo desespero do que já não existe, mas dessa frieza de contabilista que não quer salvar nada mas apenas registar a excentricidade do tempo, o desastre da história esvazia de sentido a própria lista e confere-lhe o seu lado interminável – não há, de forma propositada, ponto final, como se coubesse a nós ir acrescentando algo a essa lista. A uma história exaltante, que ligasse todos os feitos da humanidade numa marcha gloriosa e apoteótica, como um triunfo final contra a barbárie, Henri Lefebvre vai contrapor essa pequena história de tudo quanto falta; os erros, as guerras, os ódios, o desamor, a inveja, tudo quanto é da ordem do baixo, do inconfessável, das origens nada dignificantes, do acidente ou da contingência acaba por comentar em negativo toda a exaltação, por entrar de direito na história da cultura, fazendo-a lembrar-se do que quer esquecer. E se um riso se liberta por fim desta lista, desta contabilidade soturna, isso deve-se a essa fúria sem sentido que tantas coisas fez desaparecer, que tantas coisas deixou inacabadas, como se, olhando para trás, não pudéssemos senão ver todos os buracos da história, o clamor de todas as barbáries que se levanta sempre que se pega numa qualquer obra. Sem qualquer moralismo – esta história nada nos ensina, não nos lega nada, não aprendemos nada com isto –, Henri Lefebvre deixa-nos com um condensado de toda a estupidez humana de todos os tempos e latitudes, onde a história se mistura com a natureza, onde o acaso se mistura com os planeamento mais meticuloso e macabro, onde este estranho contabilista sem redenção pode apenas inserir mais um item na sua lista sombria – e, interminavelmente, continuar a sua cópia infinita. E, por fim, podiam ser suas uma das últimas falas de Macbeth: “Apaga-te, minúscula candeia! A vida é uma sombra que caminha: pobre actor que em pleno palco breve instante se contorce e pavoneia, para nunca mais se ouvir; é uma história contada por um parvo, toda ela som e fúria, mas que nada significa”. Som e fúria, diz-nos Lefebvre, eis a história do mundo.

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