Hölderlin. A Língua Bárbara do Poema

 


A fortuna crítica de Hölderlin, em língua portuguesa, em muito deve ao trabalho, incansável e desmedido – messiânico, para convocarmos Benjamin –, dos diversos tradutores que se foram medindo face a esta obra cuja torrente lírica ameaça arrastar tudo, cujo furor consegue alcançar desde a altura mais rarefeita ao abismo mais negro, a solidão e a ausência mais atroz – e Hölderlin, também ele tradutor, conheceu como ninguém o abismo que se cava nas línguas no acto de tradução. As traduções de Paulo Quintela (mas também o que escreve sobre Hölderlin), A Morte de Empédocles, Híperion e os assim chamados Hinos Tardios, de Maria Teresa Dias Furtado, os Fragmentos de Píndaro, de Bruno C. Duarte – a quem devemos, igualmente, um conjunto de estudos bastante interessantes reunidos em Lógica Poética – tudo isso não esgota a obra de Hölderlin, mas permite termos, em língua portuguesa, um conjunto bastante alargado do corpus poético (e não só), uma cartografia de uma obra que, nos seus momentos mais altos, não deixou de se medir intempestivamente com o seu tempo, instaurando neste a sua singular “interrupção contra-rítmica” (613). Maria Teresa Dias Furtado atém-se aos assim chamados “hinos tardios” e Paulo Quintela dá-nos um sobrevoo amplo da poesia de Hölderlin, não se ficando pela poesia de maturidade que conferiu o lastro que este poeta veio a ter no século XX – lastro teórico mas não só, com Heidegger, Benjamin, Adorno ou Lacoue-Labarthe, mas lembrando também Tübingen, Janeiro de Paul Celan e um certo “hoje” que aí se dá a ouvir em diálogo com uma promessa de futuro de Hölderlin. A tradução de João Barrento em Todos os Poemas, por seu lado, permite-nos ver, pela primeira vez, todo o corpus poético de Hölderlin, desde os poemas de juventude até ao pouco que foi escrevendo já depois de instalado, para nunca mais de lá sair, na torre de Tübingen – e na “loucura”. É um Hölderlin de “corpo inteiro”, como afirma João Barrento:

“De uma maneira ou de outra, percorrendo a estrada de uma vida do princípio para o fim ou em sentido inverso, tratar-se-ia sempre de dar a ler, pela primeira vez entre nós, um Hölderlin de corpo inteiro, com tudo o que prepara o período (de pouco mais de uma década) em que surgem os «grandes poemas» - hinos, odes, elegias – sempre mais glorificados e mitificados, e também com o que ficou de trinta e sete anos de isolamento do mundo, da escrita e de si.” (8)

Este “Hölderlin de corpo inteiro” permite, desta forma, que consigamos estabelecer as continuidades (de temas, mas não só), as obsessões, as diferentes soluções formais, os momentos em que mais se fazem sentir certas influências (Klopstock, Schiller, com quem manteve uma relação tensa, Píndaro), a evolução ao longo do tempo, a longa maturação – mas, igualmente, a falta de fôlego que se notam nos poemas desse longo inverno onde, como Hölderlin afirma várias vezes, segundo as palavras do seu primeiro biógrafo, “nada [me] acontece” (“es geschiert mir nichts”). 

O objectivo da reunião de todos os poemas de Hölderlin passa, acima de tudo, por “humanizar a figura de um poeta sempre deificado, integrá-lo no seu tempo e nas suas coordenadas – familiares, religiosas, afectivas, formativas, culturais”. Essa deificação tem a sua história, à qual não é alheia uma certa captura que foi feita por derivas arqui-nacionalistas e arqui-fascistas. Mas se esta é contrariada por essa história interna da poesia de Hölderlin, se essa história interna permite dar-lhe uma feição “mais humana” – mostrando um Hölderlin que não se reduz aos seus momentos maiores –, a reunião, por outro lado, permite-nos ver em todas as suas declinações, em todos os seus momentos, o fulgor – e o furor – dessa “comunhão absoluta entre o homem, a palavra da poesia, a Natureza e os deuses por vir” (9) – atestar, portanto, desse gesto poético onde o “verbo fluente” (397) de Pão e Vinho se socorre constantemente da metáfora do rio para sublinhar a feição rítmica e a fusão que se dá, no poema, entre o mais abstracto e o mais concreto. É o início de Na Nascente do Danúbio, por exemplo, onde o rio é tanto uma força imparável semelhante ao rio de lava de Arquipélago – um dos poemas onde a presença insistente e obsessiva dos Gregos mais se faz sentir – que, “jorrando, terrível, do Etna a ferver/ (...) se refresca no sagrado mar” (356), como uma dimensão melódica, “órgão magnificamente afinado/ (...) de infindáveis tubos”.

“Como quando do órgão magnificamente afinado, 
Na sala sagrada,
Jorrando, puro, de infindáveis tubos, 
Se inicia o prelúdio, o despertar da manhã, 
E a toda a volta, de sala em sala, 
O rio refrescante e melódico começa a correr, 
Enchendo de júbilo a casa
Até às mais frias sombras” (427)

O centro, digamos assim, de Na Nascente do Danúbio será talvez essa “estranha figura”, na tradução de João Barrento (“E chega até nós essa estranha figura,/ A figura do despertar,/ A voz que dá forma aos homens”)  e que, sintomaticamente, Paulo Quintela traduz como “Estrangeira” e Maria Teresa Dias Furtado como “Forasteira” – acabando ambos por vincar, mais do que a tradução de João Barrento, a estranheza dessa “voz que dá forma aos homens” (427). E é por aqui que passa a diferença específica desta tradução de Hölderlin que é, também, uma leitura que desenha, para nós, o perfil deste poeta que, na sua relação com a Grécia Antiga, traçou uma linha de fuga ao seu tempo. Como afirma João Barrento:

“Estamos, como em alguns poetas contemporâneos mais intensos, perante uma manifestação poética eminentemente próxima do sublime – não romântico, não kantiano, mas, uma vez mais, moderno, um sublime à rebours que vive do enigma do ausente ou do não-dito, e que descartou qualquer pretensão de transcendência abstracta para afirmar (como Espinosa) o mistério e o fascínio de uma imanência falante, de uma Natureza abandonada pelos deuses, mas ainda capaz de os convocar.” (20)

No entrelaçamento desta leitura com o acto de tradução – ao ponto de não se saber onde começa um e acaba outro, qual deles a causa e qual deles a consequência –, mas também da reunião de todos os poemas, resulta um Hölderlin mais próximo dessa “imanência falante” do que de uma “poesia da poesia” ou “poeta do poeta” à maneira de Heidegger, mesmo que, no fim, a poesia venha sempre acompanhada por esse carácter afirmativo, por essa potência que, à semelhança do rio, mais do que retornar a uma qualquer fonte, inunda as margens e arrasta tudo, “enchendo de júbilo a casa/ até às mais frias sombras”: a frase longa, o ritmo intenso, eloquente e envolvente, como afirma Lacoue-Labarthe, consegue capturar todos os momentos, mesmos aqueles mais sombrios, mesmo aqueles onde o luto ou a famosa indigência do tempo de Pão e Vinho (na tradução de Barrento: “E para quê poetas em tempos de indigência” (400)) se dão a ler. “Mas por vezes também o olhar límpido ama a sombra”, como afirma no mesmo poema. Esta afirmação incondicional da poesia, a torrente – lírica, melódica, abarcante – que tudo arrasta, que não conhece exterior ou negativo, é particularmente visível em O Arquipélago onde até o luto e a distância (“Diz-me, onde está Atenas? Talvez afundada em cinzas,/ Sobre as urnas dos mestres, deus enlutado (..)) são também eles arrastados pela frase longa, pelo rítmo imparável, por um canto onde ambos são objecto de afirmação.  Mas também em Como em Dia de Festa se pode ver esta potência imparável declinada em dois momentos distintos e em certa media, antagónicos:

“Assim se ergue em tempo propício 
Aqueles que nenhum mestre até ao fundo forma,
Moldados só pela poderosa Natureza, divinamente bela,
Omnipresente e rara na leveza do seu abraço.
Por isso, quando ela, em certas épocas do ano, parece dormir
No céu ou entre as plantas e os povos, 
Também os rostos dos que adensam as palavras se entristecem,
Parecem estar sós, mas são sempre futuro.
E ela própria, futurando, repousa também.”

Seria interessante equacionar a diferença entre o poeta, que surge em Pão e Vinho, e a tradução de Dichter por “aqueles que adensam a palavra”, tanto mais que “adensar” convoca uma dimensão material, passando a palavra a partilhar dessa “comunhão absoluta”, jorrando, também ela, de “infindáveis tubos”, transformando-se nesse “fogo antigo e intenso” (Retrato de Antepassado (388)). Mas tanto este caso como, por exemplo, no mesmo poema, a opção por “portentosa vibração dos ares” em vez do comum “trovão” (é esta a opção de Maria Teresa Dias Furtado), ou o final que abre para um tempo por vir (“E ela própria, futurando, repousa também”) dão conta desta “cópia transgressora e fiel” (16) em que consiste a aposta de João Barrento. Cavando assim a diferença entre as línguas – e, em certos momentos da obra de Hölderlin, é o próprio alemão que ganha um fôlego inaudito por influência grega –, que é uma outra forma de afirmar a impossível equivalência, em português, da respiração avassaladora dos poemas de Hölderlin, João Barrento deixa que a torrente lírica inunda as margens e arraste tudo nesse “transporte rítmico” de que fala Agamben – e que é, como este afirma em Ideia da Prosa, “apenas transporte de si”.

É nesta medida, considerando o ritmo imparável, que a tradução de João Barrento fornece uma leitura particular do momento do hiato, da cesura ou, na formulação de Adorno, da “parataxe”: o “por isso”, que quebra de certa forma a rítmica, que muda repentinamente a respiração do poema, que parece inserir nele um momento negativo ou uma “interrupção contra-rítmica” (613), ou o “mas” (“parecem estar sós, mas são sempre futuro”). Em ambos os casos, não parece tratar-se de uma dialéctica dos opostos ou dos extremos, como se a poesia de Hölderlin fosse composta por contrastes tensos – neste poema em concreto, entre a Natureza e estas épocas em que parece dormir, ausentar-se, noutros lugares, entre a presença dos deuses e o seu desaparecimento. Pelo contrário, do ponto de vista desta “imanência falante”, a cesura, o hiato – mas também o luto e a distância que se deixam ler noutros lugares – são ainda momentos de um certo excesso transbordante ritmicamente presente em diversos lugares.
Mas o contrário talvez se possa também dizer: o excesso transbordante é aquele do próprio ritmo, trazido pela memória, criado por uma distância indecomponível. O poema tem, desta forma, uma língua bárbara: para nós (mas que nós é este?), para quem esta “imanência falante” se tornou, doravante, impossível, a não ser a partir de uma cesura primeira e anterior, e para o “hoje” presente em  Tübingen, Janeiro, de Paul Celan, sem que se possa saber o que poderá significar, denotar, este “hoje”, antecedido por aquele “Se viesse” traumaticamente repetido três vezes. Hoje, portanto, só se pode ouvir Hölderlin a partir da cesura que ele próprio institui, da “interrupção contra-rítmica”.

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