Karl Kraus. Contra a Época
Escrito de 1899 a 1936, data da morte de Karl Kraus, com mais de vinte mil páginas publicadas e, a partir de 1911, um empreendimento pessoal de Kraus, Die Fackel concentra em si todos os modos possíveis de fúria contra uma determinada época – e sobrevive, nessa fúria incontrolável a que nada escapa, um juízo inclemente sobre o seu tempo. Estas sátiras escolhidas de entre as milhares de páginas que compuseram este anti-jornal, juntamente com Os Últimos Dias da Humanidade, a impossível peça teatral composta por montagem, e Aforismos, permite-nos desenhar essa figura excessiva, de contornos quase bíblicos que só a Viena de inícios de século XX poderia produzir – Walter Benjamin compara-o a um “mensageiro que chega, aos gritos, de cabelos eriçados”, agitando na mão “uma folha cheia de guerra e pestilência”. De facto, é interessante notar que uma das dificuldades que levou a que as traduções de Kraus escasseassem – o facto de não serem entendíveis sem o horizonte maior da vida cultural vienense das primeiras décadas do século XX – constitui, na realidade, um dos momentos maiores desta obra. Se a dívida ao seu tempo é de tal forma exorbitante que são poucas as frases em que essa marca não surja de forma indelével, isso não condena estas páginas de sátira inclemente, como em tantas outras obras de outros autores, a um conhecimento meramente historiográfico, não produz sobre elas aquela camada de pó que por vezes é preciso afastar de forma a descobrir nelas algo que nos diga respeito. Pelo contrário, o facto de cada frase, cada aforismo, se encontrar embebido no espaço e no tempo de Kraus e não poder ser dele separado transforma estas páginas de fúria inclemente numa obra profundamente intempestiva.
E intempestiva, acima de tudo, não porque haja nele uma aposta no futuro, como na famosa frase de Nietzsche, mas porque tudo aquilo que a sua época considerou como motivo de orgulho, como momento maior, foi por Kraus compreendido como absolutamente odioso. O progresso, por exemplo, que englobava não apenas as realizações técnicas mas também a moralidade e os costumes, é transformado num “incêndio universal” que só pode ser da ordem da mentira:
“A natureza pode confiar no progresso: ele não deixará de a vingar pela vergonha que lhe causou. Mas ela não quer esperar e mostra que tem vulcões para se libertar de conquistadores importunos. Amanceba-lhes as mulheres com os inimigos mortais da civilização, incendeia a luxúria com a moral e atiça-a com o medo da raça até se transformar num incêndio universal”
Há em Kraus, decerto, um conjunto de motivos que hoje nos soam a algo datado. Os escritos sobre sexualidade, devedores de uma luta com Weininger, uma figura trágica e hoje esquecida da “civilização vienense”, os ataques à moralidade, que não podem ser compreendidos sem referência ao milieu de Viena, que assistiu à proliferação da prostituição e ao nascimento da psicanálise ao mesmo tempo que seguia códigos morais rígidos, ou a própria noção de época e as considerações epocológicas, que à altura se tornaram quase um género literário e que hoje já só são possíveis através do logro da multiplicação de marcadores temporais. Mas também a tonalidade apocalíptica, presente tantos nos textos como nos aforismos, já não é hoje possível. Como refere François Hartog numa entrevista ao site Calamitá, o nosso tempo deve mais à catástrofe, tantas vezes imperceptível, do que ao apocalipse que, na sua temporalidade dos fins, confere sentido ao tempo – e se a catástrofe não tem sentido, se é, etimologicamente, o que cai sobre nós, isso não significa que a sua naturalização não deva ser colocada em causa.
No entanto, mesmo nos momentos mais datados resta a fúria inclemente que reúne a sua época num todo, a julga sem apelo nem agravo e, como sublinha Canetti, executa no mesmo momento a condenação; e já não é apenas a sua época, mas a humanidade como um todo que, como refere num texto – sem dúvida actual – em que aponta toda a sua cólera aos circuitos comerciais dos campos de batalha da primeira guerra mundial (o mesmo poderia ser dito da indústria que pulula à volta da Solução Final), tem um “lugar de honra num vazadouro cósmico”. É preciso realçar que, apesar da disparidade de alvos em que Kraus foi objectivando toda a sua fúria, ela nada tinha de arbitrário: é no império da imprensa e na sua disseminação por todo o corpo social que Kraus vai encontrar a bête noir que o acompanhará até ao final da vida. Esta será nada menos do que a “automutilação espiritual da humanidade” face à qual nem a guerra mundial pode ser comparada:
“Mas um dia as pessoas poderiam dar-se conta de como uma guerra mundial como esta foi uma coisa insignificante comparada com a automutilação espiritual da humanidade através da sua imprensa e como, no fundo, aquela não representou senão uma das emanações desta”
E a sucessão de ataques à “cultura dos jornais” sucedem-se. Num dos aforismos, falará numa “luta de extermínio contra tudo quanto voa”: “as borboletas e as mulheres, a beleza e o espírito, a natureza e a arte ressentem-se com o facto de o jornal de Domingo ter cento e cinquenta páginas”. Num outro, é a própria língua que não permanecerá a salvo, engolida pelo lugar comum e pela tagarelice jornalística: “as pessoas não percebem alemão; e eu não sou capaz de lhes dizer as coisas em jornalês”.
É este, aliás, o lugar de confronto, o centro para onde converge toda a raiva e furor de Kraus: a linguagem. De facto, o que não deixou de assinalar no assalto que o jornal faz a todas as dimensões da cultura foi a instituição da tagarelice como modo único de relação à linguagem.
“A ideia de que um jornalista escreve com a mesma pertinência tanto sobre uma nova ópera como sobre uma nova lei orgânica parlamentar tem algo de aflitivo. Certamente ele poderia dar, também, lições a um bacteriologista, a um astrónomo e talvez até a um padre. E se um especialista em matemática avançada cruzasse o seu caminho, ele provar-lhe-ia que trata por tu uma matemática mais avançada”
Talvez não se trate de, face ao jornalista, fazer valer os direitos incontestáveis do “especialista” mas de mostrar como até este, a partir de determinado momento, se transforma numa figura declinável da “cultura de jornal” – a partir do momento em que o “jornalês” se transforma na única relação possível à linguagem. No entanto, em que consiste, para Kraus, o “jornalês”, a tagarelice que invade todos os domínios da sociedade, que capturou todas as dimensões do Espírito, essa palavra caída em desuso? Acima de tudo, numa língua inflamada, febril, que Kraus conheceu de perto antes e durante da primeira grande guerra: “a imprensa, a papeira do mundo, incha de desejo de conquista, rebenta com os feitos que cada dia traz”. Começa, antes de mais, por uma economia do espanto:
“A predisposição geral para abrir a boca de espanto encontra uma correspondência nunca antes verificada por parte dos acontecimentos, e com a dimensão de espanto cresce a dimensão dos factos, até que, no ardor da corrida, tanto os mirones como o destino ficam sem fôlego”
Mas, sabemos, a economia não pára e o espanto só encontrará o seu objecto sublime no fim do mundo: “não é possível meter medo com o incompreensível a um mundo que suportaria o seu fim desde de que não ficasse privado da respectiva exibição cinematográfica”.
Este vínculo estreito entre acontecimento e notícia, que culmina na farsa de um “fim do mundo cinematográfico”, tem, no entanto, consequências bastante reais que Kraus conheceu de perto. Porque esta economia do espanto instaurou, nas primeiras décadas do século XX, uma arregimentação da linguagem, mas não só, no momento em que foi capturada pelo nacionalismo – que Kraus, num aforismo, designa como “aquele amor que me liga aos idiotas do meu país, aos que ofendem os meus costumes e aos que profanam a minha língua” – sendo que foram poucos aqueles que escaparam a essa arregimentação, ao frenesim que culimou nas trincheiras:
“Nunca antes houve uma tão impetuosa adesão à banalidade, e a imolação dos nossos maiores espíritos é tão rápida que faz surgir a suspeita de que eles não tinham um eu para sacrificar, antes pelo contrário, agiram movimentos pelo pensamento heróico de se abrigarem onde agora se está mais seguro: no lugar-comum.”
Mas esta linguagem febril, capturada pelo lugar-comum, que Kraus expõe, em todas as suas diferentes tonalidades, em Os Últimos Dias da Humanidade, é apenas uma das dimensões do império do jornalês. Ao lado desta, que tem no jornalista a sua figura, Kraus delineará uma outra, cujo parentesco ainda hoje é objecto de denegação: o esteta ou, noutra formulação usada por Kraus, o filisteu. Este, que “tem de ser continuamente recordado da beleza da vida”, que se aborrece e que “procura as coisas que não o aborrecem”, é, para usar um termo de Adolf Loos, aquele que encara a arte como ornamento.
A quem hoje demonstra uma preocupação perante a invasão do espaço público pelo burburinho que chega de baixo – que perverteu o sonho, inocente, de um espaço público democrático – talvez fosse necessário inverter os termos e considerar, como Kraus, que o ruído é, na realidade, uma criação da “cultura de jornal”. E que entre a fábrica do ódio que pressiona com a sua linguagem reduzida a injunções e o filisteu que procura rimas, “e ainda por cima más, para o entusiasmo alheio”, há um laço não muito secreto.
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