Natalia Ginzburg. Um trabalho de óptica



É que há truques. E mesmo o mais avisado cai. Todo o cuidado é pouco quando nos agradam estes filetes domésticos cortados em forma fácil e estilo prosaico. É de quem, a culpa, perguntamos nós à consciência, acossados pelo medo neurótico de que o ónus seja, como sempre, nosso. Neste caso não. Parece que não há truque, mas apenas a dificuldade em introduzir a faca na fissura analítica, dizer porquê, onde está a beleza. Ela está lá. Duas tentativas: hipérbole, infantilidade.  

Ginzburg exagera, como qualquer italiana, junta os dedos das mãos e isso dá uma maravilhosa brusquidão aos parágrafos. Veja-se o texto sobre Pavese, que é construído à nossa frente todo com silêncios impenetráveis, inflexibilidades, rudezas de quem não aguenta o quotidiano: alguém que deixava de contar com os amigos assim que eles saíam do seu alcance visual porque simplesmente não suportava imaginá-los longe.  Um adolescente eterno, totalmente alheio a qualquer obrigação adulta, sequer à estratégia retributiva da amizade (que personagem magnífica seria, mesmo que nunca tivesse existido). Veja-se a contracção das etapas existenciais em As relações humanas, o mundo transformado em grandes clarões de entendimento, segundo os quais a natureza do afecto muda como se chegasse de um planeta diferente. Acontece o mesmo nas grandes fúrias de Léxico Familiar, outro livro da autora, as incompreensões paternas, as diatribes inconsequentes e quase puramente teatrais: momentos de arrastamento do discurso que facilmente colamos a um modo italiano, gestual e solar, sendo que, inesperadamente, o interior do palácio não tem fausto e é feito quase só de nostalgia (Ginzburg teve uma vida difícil e alguns textos reflectem a clandestinidade antifascista e a perda precoce do primeiro marido às mãos de torturadores). 

Ginzburg exagera. Fá-lo, por vezes, como o faria uma criança, alguém que tenta gestos largos com membros pequenos. Leia-se o texto sobre Inglaterra, que seria um chorrilho de generalizações se não contivesse a penetrância do tom infantil: comum, claro e ao mesmo tempo mostrando a lateralidade luminosa de um intelecto por desenvolver. Leia-se Ele e Eu, sobre o marido e a autora (a ordem não é arbitrária), que não passa de um jogo de oposições, em que os contendentes só têm qualidades e defeitos absolutos. Ela não sabe nada de música, ele canta como um tenor, ela só sabe de literatura, ele vive num mundo penetrado por todas as formas de cultura. Só existe o grande e o pequeno e todas as percepções se ajustam a uma exactidão inocente. Natalia acerta porque tem a destreza das crianças, que apontam com confiança, acertando no alvo certo mesmo quando estão viradas para o sítio errado. O texto menos bom é, por ironia, o que dá o nome ao livro, um apanhado de ideias pedagógicas que talvez fossem novidade nesses anos mas hoje nos soam básicas e demasiado familiares.

P.S. Leio o prefácio de Cusk depois de escrever estas linhas, no final de tudo, como faço sempre. Não existe nele quase nada do que intuo aqui. O que se por um lado me descansa quanto à originalidade das minhas visões, por outro me faz desconfiado quanto à acuidade das mesmas.



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