Tomás Maia/Manuel Rosa


 


Vasos, pés em gesso, canoas, estátuas hieráticas com cães aos pés, caveiras, baterias inscritas em materiais encontrados, torsos, estruturas arquitectónicas que oscilam entre a casa – mas para que humanidade? – e monumentos fúnebres, seios ou estranhos seres diáfanos feitos de vidro que nascem da negritude do carvão mineral: a obra escultórica de Manuel Rosa, que Tomás Maia interroga, oferece-nos constantemente a distância e a ausência, o distanciar do distante que torna impossível qualquer aproximação, qualquer intimidade, o afastamento perpétuo, impossível de percorrer – como uma recusa que, como irá defender Tomás Maia, impõe o silêncio expondo-nos irremediavelmente a este; uma distância indecomponível, que nunca conseguiremos ultrapassar, que se anuncia e encena constantemente e que diz respeito, em última análise, ao tempo, mais do que ao espaço, ao apelo que se sente surgir destas figuras, destes destroços, e que corresponde a essa “convocação muda que é o próprio tempo”. Rui Chafes, também ele apostado numa arte que parece recusar qualquer linguagem (talvez de uma forma mais austera, menos antropomórfica), dirá da obra de Manuel Rosa que as suas “figuras despojadas e intemporais” , que “nos parecem vindas de outra época” , dizem respeito a um tempo geológico – “antigo, arcaico, arqueológico” . “Vejo o calcário como acumulação de areias, na imensidão dos anos sem início nem fim. Quantos milhares de anos demora uma rocha a ser formada e quantos demorará a transformar-se num seixo? Quantos séculos demora a areia a acumular-se, com fósseis e pedaços de cristal, até formar um bloco de pedra de calcária? É desse tempo e dessa rocha milenar que saem estas figuras silenciosas que nos aguardam e nos confrontam. Feitas de pó sedimentado, feitas de pó do tempo.” Tempo longo, voraz – aquela voracidade da physis, um perpétuo fazer e desfazer, um “fazer-que-desfaz” (15) como afirma, sem fim, sem forma, mas que também não parece conhecer o vazio. No entanto, não é apenas deste tempo que as esculturas de Manuel Rosa são feitas, ou melhor, este “pó do tempo” que se vai sedimentando ao longo de séculos, de milénios, não conhece ainda essa figura que vai surgir dele, ao mesmo tempo separável e inseparável, que lhe é devedora mas que também lhe fará chegar algo; “o fazer pródigo da physis é inseparável do seu desfazer: a natureza, sabemo-lo desde Heraclito, gosta de se esconder ou encriptar (kruptesthai)” (12). É um jogo, circular, em que tudo quanto existe paga tributo à geração e corrupção – esta última, dizia Levinas em Dieu, la Mort et le Temps, é sempre pensada a partir da primeira, mostrando uma “impossibilidade para pensar a aniquilação na acuidade com que se anuncia” , isto é, mostrando uma impossibilidade em pensar o vazio, a ausência. O que este tempo – milenar, arcaico – não conhece, desta forma, é o vazio que Tomás Maia encontra na obra de Manuel Rosa e a que dá o nome de “segundo nascimento”, “choque da existência”: “Esse segundo nascimento sucede ao nascimento biológico; entre os dois, há a revelação ou o choque da existência. É um tal choque que abre irreparavelmente o humano – que faz do nosso corpo uma ferida aberta pela qual cada um terá de sair. Há o primeiro nascimento, pelo sexo da mãe, e há o segundo – pela «cona da existência» (como dirá a personagem de Malone, de Beckett). Chamemos a isso – que coincide com a emergência da espécie –nascimento do poeta (de todo aquele que cria).” (7) Porquê irreparavelmente? Porque a saída, por parte do humano, do que Tomás Maia chama de “biológico”, que é, de facto, a saída enquanto tal, um espaçamento originário sem conteúdo determinado ou determinável, sem próprio ou propriedade possível – poderemos equacioná-la ao animal de que fala Bataille relativamente a Lascaux, à “imagem da animalidade que eles abandonavam” ? –, essa saída nunca poderá ser revertida, tal como o segundo nascimento nunca poderá ser apagado, esquecido. Irreparável, então, começa por designar uma impossibilidade: que esta saída, que a diferença, que o espaçamento ou a distância incomensurável seja rasurada. Mas irreparável significa também o vazio criado por este segundo nascimento de que fala; “dar forma ao vazio inerente ao movimento da matéria” (76): esta tarefa que Tomás Maia confere à escultura – mas que pode funcionar como metáfora para tudo o resto – mostra um fundo anárquico, um vazio impossível de preencher, e uma multiplicação infinita de formas que, sempre e de cada vez, mostram o nascimento perpétuo que se encontra inscrito, segundo Maurice Blanchot, na afirmação da arte – é a existência, que mais não é, segundo Tomás Maia, que “uma entrada por saída”. É este choque, ou este vazio de que falamos, que Tomás Maia vai encontrar nas esculturas de Manuel Rosa, a distância, indecomponível, que vai de nós a elas, mais do que de elas a nós: mesmo quando são “puro transporte sem permanência e sem garantia de vida espiritual” (40), estas esculturas permanecem dissemelhantes, permanecem a própria distância inultrapassável, signos de um tempo e de um espaço que não conhecemos, que não é o nosso, que, pior ainda, nunca poderá vir a ser nosso, que nunca alguém poderá possuir; somos intimados por elas, mas esta intimação, como apelo e responsabilidade nossa, não tem conteúdo definível, é intimação que nos acorrenta a um vazio onde, doravante, somos transportados e obrigados a transportar. “Aqui, a escultura não abandona a sua vocação arcaica – a de responder, nos limites da obra, ao choque de existir. É essa a sua resposta, a sua responsabilidade; não exactamente perante o futuro da arte, pois se se responde e só se responde a esse choque liberta-se, do mesmo gesto, a obra de toda a classificação histórica” (30) A razão pela qual a escultura – e, parece defender Tomás Maia, toda a arte – escapa a “toda a classificação histórica” prende-se exactamente a esse “choque de existir”. É o vazio – impossível de preencher –, o choque sem conteúdo determinável que intima à resposta e à responsabilidade. Mas daí decorre que não há formas mais ou menos aproximadas ou aproximativas desse vazio – todas elas se situam à mesma distância, digamos assim, ou todas elas transportam consigo o irreparável de um espaçamento originário –, que, portanto, desse vazio não nos chega uma imagem verídica, uma forma definida ou definitiva. Mas também escapa à classificação histórica por uma outra razão: porque esse nascimento da forma de que a escultura cuida – e o verbo “cuidar” tem uma função fulcral dentro desta interrogação que Tomás Maia dirige à escultura de Manuel Rosa – é transportado em toda a forma, em toda e qualquer obra, o que significa, também, que não pode haver evolução. Quando Bataille, referindo-se a Lascaux, fala numa “sensação de presença” , ou quando coloca em oposição a arte e a “actividade utilitária” (sendo que esta última objecto de “classificação histórica”, de uma evolução), dirige-se a algo que se encontra pressuposto em Tomás Maia: que a arte, quando nasce, já nasce completa, que, por consequência, não lhe falta nada, não pode evoluir – daí poder comunicar connosco. E essa completude, essa plenitude das formas – com a escultura é “a matéria do mundo a vir ao mundo”, “a coisa surgindo, ressurgindo no mundo” (27) –, diz respeito a esse vazio que é transportado, como na canoa em calcário de Manuel Rosa: “Todavia, este barco encontra-se vazio: nem o esqueleto, nem o habitual viático. Puro transporte sem permanência e sem garantia de vida espiritual. Nas imediações, sem sabermos se constituem um ponto de chegada ou de partida, vemos – de novo – três cabanas de pedra.” Este barco que se encontra vazio, “puro transporte”, a gruta enquanto “primeira representação da cripta da natureza” (42), o “resto animal” (48) sob a forma de um osso, “caveiras a desovar” (57), ou, acrescentemos, os vasos encimados por cabeças humanas, a talha de onde sobressai um torso: todos estes elementos que Tomás Maia sublinha fazem parte de uma leitura que este tem da obra escultórica de Manuel Rosa, como se, para este último, a escultura começasse antes de mais como uma arte funerária, como uma arte que dissesse respeito, dizendo também respeito ao corpo e à matéria, à morte. Poderia haver outra leitura, não necessariamente antagónica com esta nem mesmo distante, e que tivesse em conta essa dimensão arcaica que estes objectos pretendem assumir, como se fossem achados arqueológicos de uma civilização de que não sabemos mais nada: transportariam desta forma o fascínio que esses achados tantas vezes têm – Manuel Castro Caldas fala de um “pequeno Musée de l’Homme” –, aquelas esculturas de figuras humanas com cães aos pés seriam, por exemplo, estranhos guardiães de rituais cujo acesso nos é vedado. No entanto, esta arte funerária que Tomás Maia lê na obra de Manuel Rosa está longe de ter qualquer conteúdo, é um ritual vazio – como vazio se encontra a canoa – que, mais do que algo que se perdeu na noite dos tempos e que se tornou hoje, para nós, inacessível, nunca poderia ter tido qualquer conteúdo nem nunca poderá vir a ter um; é uma arte anterior a qualquer religião, que nunca deu nem nunca dará lugar a qualquer revelação ou ritual determinado, onde ninguém se prostrará perante nenhum desses objectos: “O segundo nascimento: eis o que toda a religião promete e que a arte encena” (65). “Essa mesma experiência, descrita por Beckett e Cesariny (|e tantos outros), experiência à qual chamei «nascimento do poeta», tento também renomeá-la com a antiga palavra mística (repensando-a como experiência originária do humano, anterior à formação da arte e da religião). A «mística» é a experiência do mistério (do choque que abre, fende ou abisma irreparavelmente o humano)” (82) Esta mística é anterior à arte e à religião, sem dúvida, mas também poderíamos dizer que encontramos, na reflexão de Tomás Maia sobre a escultura de Manuel Rosa, uma mística da arte ou a arte enquanto momento místico, tornando-a superior à religião, na medida em que esta última tenta sempre preencher o vazio conferindo-lhe um conteúdo determinado – Tolentino Mendonça falava, sobre as esculturas de Manuel Rosa, de “sondas enviadas ao encontro das últimas imagens” . De facto, ao cuidar do “nascimento da forma, como tal”, a arte cuida – isto é, responde, é responsável perante ou ouve o apelo – do vazio, sonda-o de forma mais ou menos intensa. Quando se depara com os estranhos escudos ou espelhos de Manuel Rosa, Tomás Maia convoca o espelho de Lycosura, um objecto técnico que não nos devolve a imagem do mortal mas apenas um “obscuro reflexo”. O problema, havendo algum, não reside no espelho, mas na capacidade que este tem de dar a ver, por subtracção, uma imagem impossível do vazio que constitui o humano. “Estes escudos são espelhos do irreconhecível. Face ao de Lycosura, os humanos não se reconheciam mas dispunham-se ao seu desconhecido íntimo (um desconhecido que nenhuma tecnociência conquistará, produzindo conhecimento, e que nenhuma religião apaziguará, prometendo a redenção ou o consolo” (94) Da mesma forma que o espelho de Lycosura nos devolve, não uma imagem – necessariamente impossível – do vazio, mas essa disposição, esse reconhecimento, do “desconhecido íntimo”, do choque da existência, da nossa errância sem retorno, também a escultura de Manuel Rosa, com as suas figuras hieráticas que parecem permanecer aquém ou além da linguagem, com os escudos, os vasos, as talhas, de onde parecem emergir a figura humana, parece escutar esse vazio – uma escultura, aliás, que não estava presente na exposição sobre a qual escreve Tomás Maia, tem a forma de uma orelha. Esta mística da arte – mística que é anterior à arte mas de que esta última cuida, ouve o apelo – acarreta um outro momento, um outro movimento, bastante presente em Manuel Rosa: a irredimível ausência da linguagem. “O livro está a tomar a forma de um diálogo mudo: eco de um antigo mutismo. A arte de Manuel Rosa deixa-me sem palavras e, por isso mesmo, intima-me a escrever. Escrever é passar todas as palavas pelo crivo do não-ter-palavras. A cabeça do poeta continua pousada sobre a pedra imóvel. A poesia acontece quando não há palavras – e nesse instante toda a linguagem, bruscamente, fica à míngua. Quando, numa palavra, não há palavras, há poesia” Este “não-ter-palavras” tem como consequência a abertura, ou a descoberta, da própria linguagem: é preciso encontrar uma forma de aproximação às obras, isto é, é preciso reinventar, em certa medida, a língua. Mas há uma diferença e esta parece decisiva: ao mutismo que intima à escrita não se responde com criação, porque a reflexão é sempre segunda face à paragem brusca da linguagem operada pela arte. E ser segunda significa chegar sempre atrasado ao momento da criação, chegar quando este já não se encontra – numa conhecida imagem de Walter Benjamin, significa oscilar entre o químico, que estuda as componentes da madeira queimada, e o alquimista, que pretende recrear o fogo.

Comentários

Mensagens populares