Valério Romão - Literatura Café com Leite
O que apavorava Pizarnik poderia definir-se sob um rótulo de política literária: o café com leite como verdade última da narrativa.
Damián Tabarovsky, Literatura de Esquerda
O pior que se pode dizer de uma determinada obra é que ela não traz consigo qualquer tipo de novidade. O novo, contrariamente ao que nos diz a literatura de mercado, não reside na novidade do conteúdo; também não reside, como aqueles que se divertem com jogos de linguagem e barroquismos vários, em processos formais – isto apesar de o novo, típica categoria moderna, poder ter estas duas dimensões. O novo é tanto da ordem da Visão e da Sensação como da ordem do intempestivo; é da ordem do limite e da tensão que este inaugura. É por isso que o escritor, tantas vezes, tem um ódio ao literário: não por uma qualquer angústia, mas porque o literário, com os seus protocolos, com os seus truques e as suas técnicas, com as suas remissões, acaba por se tornar um obstáculo à construção de um exterior da linguagem. É uma poeira que recobre as palavras e que é preciso limpar para as fazer surgir em toda a sua violência.
O que desapareceu em grande parte da prosa contemporânea – e não apenas na portuguesa – foi exactamente esse novo. O escritor actual gosta demasiado de literatura, gosta demasiado de ser escritor, gosta demasiado dos processos e das técnicas, está constantemente a demonstrar o seu amor pela coisa literária, falta-lhe aquele ódio salutar à literatura de que falava Deleuze para conseguir construir algo de novo, para criar rupturas que permitissem aspirar a qualquer coisa mais do que a mediania.
Um caso paradigmático dessa literatura “café com leite” – que não é boa nem má, e que nem chega a ser perniciosa mesmo que não reconheça que a sua possibilidade se encontra exausta – é o novo livro de Valério Romão, Cair para Dentro. É certo que um livro deste género só pode fazer as delícias de uma certa crítica literária (Miguel Real, José Mário Silva e restantes amantes da coisa literária) e que, exactamente por causa disso, se deve desde logo desconfiar. Miguel Real, por exemplo, ser eminentemente histórico que observa o mundo sub specie aeternitatis, coloca-o logo numa prateleira da História da Literatura Portuguesa, reduzindo-o a um cadáver. Tentemos averiguar se ainda resta algum sopro de vida, ou se ele poderá retomar o seu calmo lugar dentro da Nova Geração de Ficcionistas.
O que é que poderá haver em Valério Romão, portanto, que o transforme num exemplar típico de uma literatura “café com leite”? Um equilíbrio bastante económico entre formalismo, aquilo a que se costuma chamar “uma voz singular”, e narrativa que não aliena essa outra figura maior do campo literário: o Leitor. Mesmo os saltos temporais e as mudanças de perspectiva, que em Lobo Antunes funcionam como peças fundamentais de uma máquina de escrita infernal e imparável onde a dada altura nos perdemos, concorrem aqui para uma narrativa perceptível em todos os seus momentos. À excepção do final da primeira parte – um dos poucos momentos em que esta escrita se torna minimamente interessante –, que vem dar algum fôlego à escrita e torcer a lobo-antunada para lhe dar uma dimensão inusitada, em nenhum outro momento das duzentas páginas o leitor é confrontado com a sua própria cegueira, em momento algum tem de parar para recuperar o fôlego. São duzentas páginas que se lêem, digamos assim, à laia de romance – de uma assentada e com prazer, que é isso que se quer da literatura.
Esta economia, no entanto, tem o seu lado exuberante ou esplendoroso, para que Valério Romão não seja apenas um mero storyteller mas um verdadeiro écrivain: a sucessão de imagens mais ou menos conseguidas, a metáfora, a verdadeira catástrofe desta escrita, declarada perramente, a convocação da poesia e a referência erudita (até Béla Tarr aparece lá no meio, recomendado algures entre o autor e a personagem). É claro que os longos excursos sobre filosofia acabam por se tornar um tanto excessivos e denunciam de forma demasiado óbvia os gostos pessoais do autor, mas, caso venham a ser moderados, não surgem como motivo suficiente que impeça a aclamação da crítica.
Mas a esta economia da escrita junta-se uma outra característica que, também ela, faz as delícias de uma certa forma de entender a literatura: um gosto por situações-limite. Na trilogia que Cair para Dentro encerra, estas situações-limite são facilmente nomeadas: o autismo em Autismo, uma gravidez que corre mal em O da Joana e, no caso que nos interessa, a relação entre mãe e filha que são abandonadas pelo pai de Eugénia. Se é certo que este gosto por situações-limite que move tantos autores poderia e deveria ser interrogado (o que lhes falta em mãos pensam ir buscar à chamada “vida real”), a situação-limite, em Cair para Dentro, é suficientemente interessante para que se pudesse esperar que dele saísse algo mais do que estas duzentas páginas pardacentas.
Se é com bons sentimentos que se faz a má literatura, como dizia André Gide, não chega, pelo contrário, uma situação-limite para que daí resulte uma pesquisa minimamente estimulante. Aliás, basta comparar o tratamento literário feito por Valério Romão à relação mãe-filha com uma relação do mesmo tipo que aparece nas últimas páginas de As Pessoas do Drama de H.G. Cancela (nem é preciso, dentro da literatura portuguesa contemporânea, chamar Rui Nunes à colação. Para quem tenha dúvidas, basta que passe os olhos por Boca na Cinza para se ver o que é ter mãos para tocar certas músicas). Não são, de facto, situações semelhantes e As Pessoas do Drama perde-se, por vezes, num discurso sobre a representação – dívida, talvez, ao professor de filosofia. Mas Cancela consegue construir aquele ponto em que vítima e carrasco encontram um lugar que os torna indistintos, em que se olham e reconhecem. Valério Romão, pelo contrário, à excepção de um momento em que a violência física quase se torna uma extensão do carinho (sublinho o quase, porque também aqui falha, também aqui a violência é evitada, colocada num lugar asséptico, sem contaminar o resto), fica-se pela inadaptação de uma personagem que encontra na filosofia e na poesia formas de fuga ao real, formas de sublimação demasiado fáceis.
Tomemos como exemplo o “nascimento da poesia” que se dá na página 47 e citemos uma longa passagem:
“Muito mais tarde, já aluna universitária, lembro-me de pensar muitas vezes nesta velha à janela, metáfora incompleta de qualquer coisa mais vasta e mais terrível, e acordei uma noite com uns versos que gatafunhei à pressa num guardanapo, escondendo-o sob o colchão para não dar indícios à mãe de que ainda pudesse haver poesia em mim, e diziam:
definição de humano
uma ponte de carne esticada
entre dois promontórios
o precipício em baixo e o nada em cima,
e se ao início não percebia a relação entre aquele poema, a minha infância e a vida em geral, ao lembrar-me da escola e do ritual dos papéis, e da única resposta que obtive do Jorge, uma vez em que ele me chamou no recreio, para meu estarrecimento, e à frente de todos quantos quiseram ouvir, me disse que tinha as pernas tortas e olhos de avariada, vi de repente essa grande constelação de homens e mulheres derrotados, de portadores de fragilidades várias, reluzindo no marfim dos caninos daqueles que ladram à sua passagem, e eu, arqueada avariada, fiz xixi, fiz xixi à frente de todos eles, e chorei.”
Não comparemos este surgir da poesia – por mais bem-intencionado que seja Valério Romão no seu amor à poesia, correndo mesmo o risco do ridículo ao conferir-lhe, numa diálogo em que a poesia aparece quase como uma actividade subversiva, uma perigosidade que ela, lamento informar, não tem; não comparemos, portanto, este surgir da poesia com o Jorge de Sena de Sinais de Fogo, onde irrompe a partir de uma tensão inescapável, a tocar o incompreensível – enquanto aqui nada há da grandeza de uma linguagem levada ao limite, que deixe ver o seu exterior. Passemos também por cima do sentimentalismo fácil com que termina ou mesmo da escolha do vocábulo “xixi”, que, na ânsia de dar um “efeito de real” à linguagem (é uma criança que fala, e estas fazem xixi, não se mijam), faz perder por completo a força desse mesmo real a que quer aderir – prova de que a infidelidade é um recurso literário bastante mais interessante. Concentremo-nos, portanto, na “situação-limite”, nesta suposta violência, na “dureza” que faz a fama crítica de Valério Romão. O que é que acontece a esta “coisa mais vasta e mais terrível”? Pura e simplesmente desaparece por baixo do sentimentalismo e da bondade de Eugénia. Em lugar algum destas duzentas e poucas páginas a violência se inscreve nas coisas, como acontece em Rui Nunes ou mesmo em Cancela – fica sempre a pairar nas situações, entre as pessoas e as coisas, raramente ganhando um rosto preciso ou chamando a si a palavra. Eugénia permanece sempre a vítima inadaptada, que chora e faz “xixi” mas que não conhece aquele ódio ou desprezo que a tornariam interessante – pelo contrário, encontra refúgio na poesia e na filosofia, que perdem qualquer fulgor para se tornarem o lugar vazio em que pode recuperar o afecto perdido da mamã (Sartre dizia de Baudelaire que este corria para baixo das saias da mãe a gritar “mamã, sou diferente”. Não andamos distante desta canga existencialista quando Valério, num artigo, defende a redenção da vida pela literatura, reduzindo esta a um “afagar o euzinho diferente que todos somos"). A mãe, por mais fria ou asfixiante que seja, nunca chega a ser cruel; mesmo o pai, que poderia ter sido mais trabalhado e que desaparece para reaparecer já quase no fim da narrativa, alcoólico que renega a filha e abandona a família, é, digamos assim, “teologicamente redimido” ao descobrir deus junto de uma seita. Em suma, quando poderia alcançar o lugar em que a violência inunda a linguagem, e mesmo descontando aquela ideia um tanto inocente da crise da família – parece desconhecer que esta crise data, no mínimo, da década de 60 do século XX –, Valério Romão cai na metáfora e no bom sentimento. E o mundo redime-se na escrita.
Esta violência, portanto, que faz a fama crítica de Valério Romão, nunca chega a comparecer (como refere Rancière, cuja lição os nossos escritores não interiorizaram, uma imagem da violência não é necessariamente uma imagem violenta). É invocada, evocada diversas vezes, mas apenas ser colocada em suspenso, “metaforizada”: “facas e lanças e espadas capazes de romper árvores, sinestesia convocando a materialização daquilo que se imagina quando no coração entram os afluentes do ódio”. Não haveria forma de descrever o irromper da raiva de Virgínia que estivesse à altura de uma das Stimmungen de maior tradição literária, ou que, pelo menos, viesse contrariar o “metaforismo selvagem” que está constantemente a vigiar a violência, a impedi-la de entrar nos corpos e nas coisas? Porque parece ser essa a função da metáfora e da imagem (salvo uma ou outra excepção): sem testar os limites da linguagem, sem a levar até um ponto de tensão que permitisse ver o exterior da língua, construir uma Visão, uma Sensação, à maneira de Deleuze, coloca barreiras higiénicas à violência, controla ou minora-lhe os efeitos e, por último, apaga-a do real. Pode Valério Romão, desta forma, descrever toda e qualquer situação-limite, colocar Eugénia a masturbar-se com a lombada de um livro – até neste momento a paixão pela literatura de Valério Romão, pelo seu poder e pela sua capacidade, se deixa ouvir – ou imaginar os insultos que quiser, que o resultado será, apenas, uma “literatura café com leite”: nem muito forte nem muito fraca, nem totalmente desprovida de interesse nem demasiado violenta; escrita com desenvoltura, cheia de recursos, demasiado consciente das suas dívidas, deixando-se ler sem qualquer forma de atrito (haverá acusação pior?), sem novidade alguma. Mas não se poderia esperar mais, quando ficamos apenas com um objecto pastoso, sem fôlego, onde devíamos ter algo virulento, que rompesse o marasmo do literário cheio de frases de efeito?
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