À atenção dos nossos livreiros independentes




Em tempos menos recuados do que hoje começa a parecer-nos, as livrarias impunham-se como túneis escavados à colher por bandos de evadidos. Era ali que dávamos por essas erupções à superfície de uma existência mais vigorosa e profunda, margens que rompiam com a mecânica mais circular dos nossos hábitos. Entrávamos por elas dentro e sentíamos um corte que fazia estremecer as nossas percepções, convocando-nos para uma outra relação de escala, exigindo um foco mais concentrado. E eram mais instigantes aquelas que, desde logo, e seguindo o exemplo dos livros, se dispunham de tal modo que, com cada passo, íamos penetrando e avançando entre capítulos que se sucediam articulando um percurso, sendo necessário uma submersão para captar uma espécie de rumor contíguo, o qual nos prendia ao fulgor desses arquivos labirínticos, parecendo estes reelaborar-se a cada secção ou estante, e às relações de vizinhança fortíssimas, como uma sintaxe própria, respirando por fissuras inesperadas. Punham-nos diante de aberturas que inscreviam a sua diferença como se ali tivéssemos simultaneamente um mapa e o próprio território, a descrição dos fenómenos abrindo o apetite e também o estômago em processo de digestão. A floresta e o detalhe, tudo reverberando, fazendo destes espaços que se dispunham a ser lidos, levando o visitante a embrenhar-se seguindo uma série de sugestões, horizontes desdobráveis, instigando essa metamorfose de alguém que deixa de se mover quase alheado para subitamente sentir o impulso de se deter, de desabar no ínfimo, ser acometido pelo apelo e a necessidade de uma intimidade contrabandeada ao longo dos séculos, de uma arquitectura feita para propagar os sussurros mais inquietantes, como essas inscrições ou frases enigmáticas que legam entre si os sucessivos inquilinos de uma cela prisional, ou os sinais percutidos entre as diferentes celas pelos que, enfiados no cárcere, insistem e resgatam a magnitude desse ulterior sentido através do qual pode ainda traficar-se um sopro de humanidade.

As livrarias eram além disso parceiros firmes dos editores, e só como tributo a essa relação cada vez mais comprometida é que se justifica que ainda nos sintamos compelidos a entregar-lhes uma fatia igual à que nos cabe do preço dos livros, reconhecendo as tribulações de se manter uma porta aberta para a rua, não deixando que sejam bloqueadas as passagens entre dois mundos cada vez mais distantes entre si, e isto mesmo quando muitos livreiros se recusam até a adquirir os livros, recebendo-os à consignação, ou seja, rejeitando todo o risco, ao mesmo tempo que se fazem valer da aposta dos editores, que suportam os custos sem qualquer garantia de retorno, e sem também se sentirem implicados nesse esforço de transmitir e divulgar outros juízos e noções, traçar fronteiras entre o que resiste e demarca uma relação diferenciada face a todo o lixo oportunista que surge embalado pela litania do consumo e compele à compra por impulso.

Aos poucos, tem vindo a tornar-se evidente o perigo das livrarias se tornarem meros entrepostos e montras para uma circulação acelerada e indiferenciada dos livros, os quais vêem o seu período de exposição cada vez mais abreviado, antes de serem devolvidos e só lhes restar a possibilidade de uma segunda vida no lote liquidatário dos saldos. Neste regime, e com todos os custos a aumentarem, os livros são forçados a uma desvalorização desde a primeira hora, sofrendo esse desconto inicial de 10% (e pense-se que outro bem inicia as rondas já sujeito a esse estigma) para alimentar esta dinâmica própria dos supermercados, e vem-se tornando mais e mais difícil retomar uma relação igualitária nesta cadeia, que valorize os livros pelo que neles se lê, pelos desvios que estes propõem, em vez de embarcar nesta política de terra queimada.

Além disso, não investindo em fundos de modo a construírem a sua autonomia, as livrarias também se diferenciam cada vez menos umas das outras, frustrando-se aquela noção de um percurso irrepetível para dar lugar a essa guerra de trincheiras e à arbitrariedade do regime das novidades ou dos saldos de estação. Deste modo, mesmo as ditas livrarias independentes se parecem cada vez mais com as de centro comercial, e não só não contrariam como colaboram nessa forma de condicionamento dos editores, que se vêem forçados ao regime de fuga para a frente, apresentando novidades apenas para manterem alguma expressão nestas ilhas à deriva. Por outro lado, à medida que perdem a capacidade de se definirem como projecções físicas desse contexto de percepção crítica que é a leitura, as livrarias participam cada vez mais na expansão do deserto e da mesmidade, e sinal disso é a forma como, hoje, em vez de nos determos com o dedo a percorrer as lombadas como uma intriga vertiginosa, estas se tornam corredores e lugares de passagem, e se apresentam como sequelas de um mesmo mal generalizado, uma repetição ostensiva do mediatismo azucrinante que afunila todas as perspectivas, capitulando perante esses modelos de conformação e replicação, abdicando da sua singularidade e integrando-se ao reino hegemónico do mercado.

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