O que é uma livraria?



O ciclo de conversas com editores da livraria Tigre de Papel, e o subsequente convite que me foi feito para ir ali falar sobre edição e, de forma mais abrangente, sobre os problemas que enfrenta o sector dos livros entre nós, desde já serviu pelo menos para renovar o ânimo de voltar a pensar a necessidade desse vínculo de cumplicidade que tem vindo a desfazer-se na relação entre editores e livreiros. Basta dizer que é o primeiro convite que nos é dirigido em 13 anos para participarmos numa discussão à volta destas questões. O texto que se segue é mais um esforço para prosseguir esse questionamento que a larga maioria dos agentes neste sector evitam a todo o custo. Num esforço absurdo de seduzir as massas, em breve dar-se-ão conta de que terão descaracterizado tudo o que em tempos atraía e formava os verdadeiros leitores, e qualquer dia bastará um serviço de subscrição, com o regime mediático em peso a definir o cardápio, para satisfazer os apetites de um público amorfo que encara a livraria como um mero depósito de livros.


Idealmente uma livraria deveria ser um espaço extraterritorial e multilingue, uma zona que, pela natureza desafiadora dos espíritos que chama a si, pelo modo como subverte as hierarquias, se torna um território proscrito, ao mesmo tempo um refúgio, um oásis e um inferno. Jorge Carrión lembra-nos que “as sociedades engendram normas que encurralam, implacáveis, os desvios”, mas adianta também que, “até esse momento chegar, todos os desviados, todos os originais, todas as almas livres, todos os viciados e os inclassificáveis tentam aproveitar-se desse parêntesis”. Não é só um refúgio no presente, mas um lugar para acicatar a desconfiança da História, abrigando milhares de variantes que ficaram pelo caminho ou que não obtiveram publicidade, e por isso torna-se também um refúgio de todas as anomalias dos séculos passados, de todos os desvios. É frequente encontrarmos nas livrarias um tipo de sujeito que se entregou a um vício difícil de definir, uma vez que a errância o leva a lançar-se vertiginosamente em certas causas ou temas, a perder-se neles e dominá-los com uma paixão e uma lucidez ferocíssimas, podendo passado um tempo tornar-se-lhes quase indiferente. Como um ser que viaja entre períodos e consciências, que se encanta por um ângulo ou perspectiva para, no momento seguinte, lhe virar costas, não voltando a olhar nessa direcção. Há leitores que não se resignam a essa tentação de fazer das suas vidas um enredo que progride num só sentido, ou até uma narrativa que funcione segundo algum princípio de progresso, preferindo antes o desafio de perseguir “a miragem da literatura”, esse horizonte de infinitas representações, metamorfoses incansáveis, que chegam a misturar-se e a coexistir antes de se dissiparem. Por isso, nos grandes viciados da leitura, encontra-se amiúde essa forma de alienação livresca, gente que parece ter deixado o corpo apenas como uma âncora ou uma sombra para continuarem a vir colher alguns raros frutos a este mundo, tendo migrado para essa região onde os impulsos neuronais comprimem num regime desaforado e delirante o tempo e o espaço, entregando-se ao balanço daqueles que não estão dispostos a pactuar com as urgências mais imediatas da realidade ou da sua época. Estes “leitores anárquicos” adoram por isso esses espaços que acolhem as relações mais imprevisíveis, e então não é difícil perceber a sua atracção por certas livrarias ou bibliotecas, essas que se organizam como labirintos, no qual, ao fim de umas horas, somos capazes de intuir uma composição poética como aquela que nos descreve Elisa Gabbert, poeta e ensaísta norte-americana, ao lembrar uma demonstração bastante comum que é feita nas aulas de psicologia, com o professor às tantas a segurar uma folha de papel para logo a amarrotar fazendo uma bola. Assim, aquela superfície antes lisa, ao tornar-se compacta até caber dentro de um punho, deverá evidenciar a razão porque o tecido cerebral humano tem aquela forma amarrotada. Isto permite que uma maior área de superfície possa ser contida num espaço pequeno: o cérebro é um imenso percurso que cabe no espaço do crânio. Um labirinto extraordinário, que, como acontece com a folha de papel, permite assim que os cantos opostos da página possam estar em contacto. Quanto mais dobras tenha maior será o número das ligações, maior a velocidade de um ponto ao outro, maior a complexidade do caminho e a margem para escapar ao regime padrão. Ora, se isto é uma imagem tão útil para a relação experimental das formas para a qual a poesia aponta ao tentar descobrir essa dissemelhança face à prosa, essa distância que a autonomiza enquanto exploração de novos sentidos, se o verso vai buscar ao latim o seu sentido àquela viragem, à cesura ou dobra, a esse movimento da charrua no final do rego, de modo a poder desenhar em sentido contrário outro rego paralelo, conseguimos perceber que o poema nasce dessa necessidade de criar um percurso mais articulado, gerando mais zonas de contacto. Mas se a forma no poema confia nesses acidentes e acasos para estar disponível para outras possibilidades desviantes, se o corte e essa sensação de que as marcas tipográficas estão ali num desafio ao silêncio que as cerca, essas linhas, não estando sustentadas num padrão imediatamente reconhecível, devolvem a atenção para os elementos de superfície da linguagem, para a estranheza daqueles signos, para o modo como as palavras estão num equilíbrio precário, como dependem e ao mesmo tempo são perturbadas por aquelas que estão à sua volta, como antes de se chegar a algum sentido, a atenção anda por ali a tactear, sentindo as suas próprias limitações, apoiando-se nesta palavra, sendo sacudida por aquela... E as próprias palavras se defendem de uma harmonia vulgar, que logo as imobilizaria, mantendo uma tensão precisamente porque não estão confinadas a uma ordem sucessiva, mas admitem uma decomposição, enfrentam-se, fazem o sentido sentir-se uma mera hipótese entre várias. O mesmo se passa numa livraria ou numa biblioteca, mas a primeira é menos extática, e sofre perdas e ganhos todos os dias, o que abre novas linhas de relação e fuga, pondo a conversar os seus títulos, aqueles formatos, aqueles signos. Não importa o quão pequena seja. Uma estante desenhada com o apuro de um haiku é sempre mais intrigante do que uma dessas maiores mas abandonadas ao regime geral dos arquivos, cedendo à coacção dos géneros, ou até à ordem alfabética, não propondo nada de mais incitante. A ordem que é imposta por motivos exteriores é sempre um ditado que se recebe e que contraria o fulgor das intuições e mutações constantes que decorrem no espírito do leitor. Uma boa livraria constrói-se como um texto, um poema. Carrión diz-nos que esta pode funcionar como uma máquina surrealista de analogias inesperadas. É uma caçada à indizível presa que a cada momento o acaso nos serve. Por isso quem entra numa livraria deseja sobretudo ir ao encontro de um horizonte imprevisível, mergulhar cada vez mais fundo nessa paisagem feita de infinitas dobras, e, por essa razão, não há maior traição a essa errância aventurosa que entrarmos numa livraria, sobretudo numa que não tem obrigação de se submeter às burocracias dessas ordens superiores que sempre partem de gente que detesta “a miragem da literatura”, preferindo a um livro sentir com os dedos um maço de notas no bolso... não há maior traição que encontrar uma livraria cujo interior é mais outro ditado desses que soam por toda a parte, mais outra forma de desistência. Na sua “Lettre sur le commerce des livres”, Diderot defendia que “o fundo editorial de um livreiro é a base do seu comércio e da sua fortuna”. Mas só é assim porque de outra forma a livraria nunca chega a ser verdadeiramente uma geografia que instiga a imaginação, propondo-lhe um sistema complexo e autónomo, uma série de caminhos que não se podem encontrar em mais nenhum outro sítio. Isso faz do livreiro um cartógrafo de um território que não cessa de sugerir outros desvios, obrigando aquele que lá entra a mover-se com a maior cautela, gestos mínimos, pequenos passos, coisas de nada e que lembram a tensão de um corpo quando dorme e sonha: seria impossível a partir dessas indicações exteriores, dessa aparência, localizá-lo no infinito dessas digressões que são possíveis a quem sonha. É essa subtil intimidade, essa aventura que se erige hoje no meio das nossas “metrópoles canibais” como a maior antítese, o melhor antídoto contra esse circuito que se desenha para fazer desaparecer nele os homens… “Os nossos passeios repetidos, os nossos circuitos e tentativas para nos orientarmos – para chegarmos ao coração do labirinto – revelaram-se frustrantes. Não havia centro”, escreve Iain Sinclair. E é isto, paisagens de sangue pisado e incapaz de se renovar e assumir um novo ímpeto. Paisagens áridas, toda uma cenografia montada para distrair-nos enquanto o deserto cresce e nós fazemos grandes distâncias em busca de um coração que não há, e por dentro essa pequena glândula orgulhosa, incapaz de produzir a sua diferença, contente por se sentir confirmada entre “essas naturezas doentias destinadas a nunca saber apreciar os obstáculos e a sobrestimar os prazeres” (Michaux). Face a este cenário que nos envolve e atordoa, é importante defender essas poucas "livrarias de trincheira" (Carrión) que se distinguem precisamente por perceberem que só há futuro a partir do momento em que se encara a possibilidade de manter em aberto as variações que são possíveis a partir da leitura do passado, de modo a que a História não venha a impor-se como um ditado, um regime tendencioso e crente numa dinâmica de progresso, levando-nos a abdicar daquele sentido de desconfiança e suspeição, desse exame crítico e do intuito de resistência perante os modelos que procuram conduzir-nos a uma unanimidade descerebrada. 

Comentários

  1. Estive na Tigre de Papel na Conversa com o Diogo. E foi revitalizante ouvi-lo e suscitou-me até a gargalhada disfarçada, porque quando alguém expõe o rídiculo banalizado, o humor acontece.

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