José Alberto Oliveira (1952-2023). O coração, já só músculo



Estás bem lixado se o obituarista que se oferece para te fazer a nota em que se arredonda e puxa lustro aos factos, dando tudo para um balanço roçando a altivez, não se lembra de exaltar algo mais se não o muito discreto que foste, a consistência e coerência, ainda que vesga, numa camonice rezinga, porque nunca viste as coisas irem mais longe ou voltarem avivadas, e o melhor que pudeste pressentir nos teus versos terá sido “o hálito de deuses dormindo junto de animais”. Todos têm direito às suas tentativas, e até, se assim entenderem, a muitos mais erros, a essa insistência num desamparo que prefere ficar surdo a tudo o que não combine com a sua música vaga, tenebrosa, e demasiado sensível à luz. Mas a todos assiste depois um momento em que se abrem as portadas, se deixa que o quarto, entregue àquela decomposição delirante das mais ínfimas partículas, possa enfim ser arejado, tenha um momento em que nele se inclui um motivo inesperado, uma força capaz de encadear os sentidos de modo a impor um desafio que não consinta a indiferença. Estamos bem lixados todos com os admiradores que nos restam, que ainda são piores do que se só nos restassem inimigos mais ou menos empenhados. É como dizia o Sena, citando aquela frase do Almada, ao dizer que mais se queria com inimigos sinceros que com admiradores sem pontaria. Admiradores mortíferos parece ser tudo aquilo com que pode contar. E se o Sena se queixava demasiado, todo o seu exagero só é superado pela confirmação de que estava carregado de razão: “Infelizmente, Portugal é uma coisa tão medíocre, tão reles, e tão mesquinha, que, na falta de inimigos sinceros (que um inimigo português nunca é), a gente tem de contentar-se reconhecidamente com a falta de pontaria dos admiradores devotados. Leia-se o obituário que Luís Miguel Queirós fez, sem dúvida exprimindo ali o melhor que pode a sua honesta devoção, mas tão desconforme com qualquer sentido do esplendor, que por mais ajustado com o enredo que se serve de rodeios e subterfúgios para contornar a trama central que não vai além de um soluço, que tudo aquilo sabe a um modo de conformação mesquinha, à medida que todo o sentido de encanto vai esmorecendo inexoravelmente. E sim, é certo que alguma alimária dirá que lhe pareceu muito bem, adequadamente sóbrio, uma homenagem que não escorrega na choraminguice lusíada, e que afina a única corda do pobre instrumento esgarçado que temos e que vai sempre a vibrar e coçar a barriga da grande besta melancólica. Mas se é para dizer alguma coisa da morte, tem de se ver esta como o negativo da vida, e se o propósito é ainda redescobri-la à luz do sol dos sóis, então, e se queremos tocar o nervo de alguma coisa, impor um sobressalto de volta ao coração, então o que dizia aquele puto imprecador e obstinadamente impetuoso? Ah, pois: “General, se ainda há um canhão nas tuas linhas destroçadas, bombardeia-nos com torrões de argila! Visa os escaparates dos armazéns esplêndidos! Os salões! Faz com que a cidade coma a sua poeira!” Mas isto parece estar longe demais para uma cidade que ficou reduzida ao susto da sua inexpressão, esta cidade toda ela devotada ao rigor desse luto ensaiado pelo fastio das marés, o luto que se torno um regime moral insidioso, que esgota tudo, que faz com que todas as nossas relações estejam organizadas segundo formas de padecimento, seja ele mais irónico ou mesmo fingindo um tanto de ira, mesmo o poema é já essa módica dose de veneno servida ao domicílio, uma vez por semana ou mil vezes por dia, mas, de qualquer modo, muito longe daquele gozo de um ataque ou até de uma defesa “inextricavelmente ligados à expressão do ser vivo”. Não, por aqui, como dizia um deles, “morre-se muito mal”, mas orgulhosamente, até por isso. Até a Guidinha aqui há dias, essa que não se cansa da leccionação escolar de adultos na visão pré-primária da sua força, até ela se dizia cansada de estar de pé no meio desses receitais do versinho carunchoso como o ex-fado da outra senhora, “cansada da poesia que morre a cada poema para voltar a morrer no próximo”, dizia ela. E logo deixava vir ao de cima o óbvio sem, é claro, prejudicar as suas relações com o entorno: “Tem de haver outra coisa além de se descer ao inferno de suspensórios.” Pois tem, mas não digam nada ao Queirós, que ele põe-se logo de trombas e nunca mais olha n vossa direcção. País de cagões amuados, lentos suicidas sempre com o frasquinhos de lágrimas e as suas susceptibilidades massacrantes. Não se consegue, por isso, ter nenhuma conversa se não nos ficarmos por meros enxertos de sacristia católica. Ainda nos vêm exigir a qualquer hora que sejamos magnânimos, que nos fiquemos pelo nível desse jogo de damas, atentos à hora do chá para cruzar a perna e olhar pela janela. E, nisto, se fizermos em cacos o serviço, atirando com ele ao chão, enjoados da mediocridade e dessa mediania gloriosa, logo somos banidos do convívio, e lá se ficam eles como coveiros de papel, afiando o lápis nos seus departamentos de justiça em letra miudíssima, cumprindo mais algum turno nos serviços de enciclopédia e arrumação precária de alguns nomes na mais que defunta história de embalar os necrófagos que já só se animam com a perspectiva de um lugar na literatura portuguesa, nas celebrações póstumas, nesses ajustes de contas com que sonham ou deliram nas conversas moles que têm às tantas da madrugada. E assim, como faz muito notava Cesariny, “para qualquer lado exterior a nós que olhemos entramos numa zona que mesmo entre os mais novos está contente de ser puríssimo decalque de um momento anterior, um pensamento instalado na repetição (esta julgada muito boa para os efeitos da difusão)”… Depois também fazia um parêntesis para se pôr a cheirar esta cultura de borra que todos atacam genericamente embora a defendam raivosamente a partir do momento em que se toca em alguma das teclas deste piano apodrecido fazendo doer aos ouvidos o grau de desafinação doentia em que a coisa vai embalada, e ao inspirar este ar putrefacto que nos cerca, ele viu bem como a nossa colecção se tranquilizava com as suas mortes “exemplares”, e aí vem o parêntesis: “não há nada que uma sociedade abjecta goste mais de ver do que uma morte exemplar, dá logo dois xelins para o movimento”. E aí temos mais outra morte perfeitamente exemplar no sentido da sua conformação com este regime geral de usura imposto à vida, uma vida de castigo, em que o cardiologista é dos primeiros a vir atestar uma e outra vez que o coração, já só músculo, não empurra ou impulsiona nada, antes parece que cospe, e que o sangue por estes dias é menos uma vontade de alcance do que um escarro sobre a própria vida. Mas e depois disso, o que nos resta para a poesia ou o raio que ainda admita partir o reflexo entre nós? Bem, talvez a etiqueta: “há que fazer boa cara:/ o preço pode ser alto,/ mas nada/ de burburinho, nada/ que pareça regateio.” E, mesmo assim, se eu quisesse gostar mais deste poeta, se em vez de um inimigo sincero, nesta hora eu me esforçasse por ser algo mais que um desse pífios devotos, eu veria os sinais de um desastre inconfessado, como nos versos de Auden, por ele traduzidos com um rigor roçando a cumplicidade: “Quem não consegue traçar o mapa da sua vida,/ Sombrio na estação onde encontra os seus amores/ E se despede continuamente, assinalar o ponto/ Onde o primeiro corpo da felicidade foi descoberto?” Eu pressentiria num desses primeiros poemas os sinais de algo que se falhou, talvez por se ter pressentido que havia tempo ou outras vidas, acabando por restar apenas esta, com a sua falta de pontaria: “Foi um acaso, uma obstinação? Encontrei-o/ na rua, na praia? Os lábios do sol apenas/ entreabertos. A areia quente, à volta do corpo.// Num bar, à tarde, bebemos cerveja./ Lagartos ao sol, maliciosos,/ lambiam as pedras./ Língua rastejante, olhos súbitos. Esse/ rapaz desprevenido, amei-o?” Aí está uma hipótese de fulgor, um rastilho que se viu molhado, não restando depois senão a treva de quem se despede continuamente, dessa ou de outra saída, acusando a vida como se houvesse sido ela quem nos falhou, e não o contrário. O coração ou é tudo, ou vai dar ao mesmo, a um músculo irrigando pela vida fora o desamparo de um erro cada vez mais omisso em relação à sua última tentativa.


Comentários

Mensagens populares