Céline. Uma música escura que persiste



Que a literatura não é uma espécie de vento comum, que avança por si mesmo, formado por emanações cujas origens se confundem na grande massa que movem (em cujo caso não faltaria nunca mencionar o indivíduo, porque outro alguém estaria no mesmo sítio à mesma hora para fazer o mesmo, ou porque acções variadas acabariam, no meio certo, por provocar efeito igual), que a literatura é a ocorrência de entidades, percebe-se quando de repente morre um desses magos isolados e podemos confirmar o buraco que ficou. A verdade é que cada escritor, se o for a sério, é ramo e raiz de si mesmo e produz, de próprio esforço, uma floresta tão individual quanto perecível. A morte do escritor é um corte abrupto numa versão irrepetível da realidade literária, a obliteração completa do caminho ou, para usar a metáfora vegetal, a total anulação de uma espécie, e do seu específico, irredutível fruto. A morte de um autor é a morte da literatura. A ideia dessa irreversibilidade, a sensação de que ficámos em mão com a obra completa e que não há volta a dar a esse facto, talvez nos livre de desapontamentos, mas, feitas as contas, corresponde sempre ao choque de uma mutilação. Por isso não é de admirar o júbilo, sempre que alguém anuncia ter encontrado, no meio de uma clareira já formada, um último fruto dessa árvore, um resto miraculoso que, até ser lido, conserva o rosto feliz da hipótese e da expectativa. Conhecendo, porém, as regras do universo, não é menos natural que nos assustemos com essa descoberta, pois sabemos quão tentadoras são as ressurreições e quanto, no mercado, pode valer a súbita satisfação da nostalgia. Não ignoramos o trabalho que é a escrita, e podemos imaginar o tipo de monstros transitórios, quimeras espúrias, que habitam a oficina do artista entre o clarão de uma primeira ideia e o estado apresentável de uma obra. Encontrado um tomo desaparecido, reabilitado um rascunho, ou reconstruída a máquina deixada em partes pelos caixotes da montagem, nunca sabemos bem o que nos vai sair, se uma obra que faça honra ao fantasma querido, se apenas um expediente para sugar mais linfa a esse morto. Muitas vezes, a descoberta não é senão motivo para uma curiosidade mórbida, própria para coleccionadores de relíquias, um sudário onde nada ficou senão uma sombra anémica e duvidosa. Neste caso, contudo, tivemos sorte.
Com Viagem ao fim da noite, publicada em 1932 sem grandes problemas de aceitação literária (atestando toda uma tolerância francesa aos banhos de fel, sempre que bem encenados), talvez nem faltasse a Céline escrever mais nada para se plantar, torto mas de vez, no panteão nacional. Morte a crédito, e a obra que depois atravessou, às vezes escorrente e fétida, a Segunda Guerra Mundial, escoravam sem dificuldades um lugar literário cuja versão cívica se deterioraria, numa descensão rigorosamente inversa à habilidade do verbo. Bagatelas para um massacre e tudo o que se seguiu de negro panfletismo pró-nazi, haveriam de mostrar-nos que a maldade de Bardamu, a raiva congénita e uma avaliação pouco abonatória do género humano (armas toleráveis quando assestadas aos males da burguesia e à facilidade com que a mesma aceita a sua culpa e se alivia de a ver vazada no que, de tão maléfico, não pode ser senão uma inofensiva caricatura), seriam menos um modo de abordagem que um entortamento original de raízes, capaz de penetrar terrenos uniformemente condenáveis. As provas de anti-semitismo e colaboração com o invasor, acabariam por sugerir que a radicalidade deste estilista do esgoto e da pequena maldade partia de bases nada aceitáveis, que o haveriam de proscrever longamente no pós-guerra.
Guerra, publicado agora pela primeira vez, sessenta anos depois da morte do autor, é parte de um conjunto de manuscritos roubado da casa de Céline após a libertação do país, no final da segunda guerra mundial, e só ultimamente devolvido aos herdeiros legítimos do autor. (Está planeada, como se pode ler na Introdução a esta edição, a publicação de dois outros volumes, Infância Londres, este último a continuação da presente narrativa). O palco do romance é, como sempre, a vida do autor, sendo até possível balizar os factos algures entre a cronologia de Viagem ao fim da noite e a de Morte a crédito e estabelecer paralelos com a participação de Céline na Primeira Guerra Mundial e os ferimentos que nela sofreu. Narrativa de um soldado raso vitimado pelo primeiro conflito global, o romance parece recolocar o autor ao lado dos heróis, mesmo que só por momentos. Como noutras obras, assistimos a uma deformação progressiva do cenário, que a cada indagação o tornam mais escuro, burlesco e abrasivo. “Apanhei com a guerra na cabeça”, dirá Ferdinand, o protagonista, ferido em batalha, desarticulado de um ombro e atroado permanentemente com o barulho dos canhões por um estilhaço que lhe ficou no ouvido. Mas não são lutas heróicas que nos narra, não tanto o absurdo da morte, do sangue, balas que zunem ou camaradas que morrem injustamente, mas a bizarra dissolução da pequena cidade onde convalesce e em cujos meandros se entrega a intercâmbios com enfermeiras dominadoras, amizades com proxenetas em avançado estado de decomposição e desvarios líricos com prostitutas demasiado espertas - esta lateralização, de quem se desvia da paisagem principal para se concentrar no lodo que lhe fica ao pé, parecer provar, mais uma vez, a persistência de Céline sobre os acidentes da História. Não é tanto sobre a guerra que incide a narrativa (embora ela paire sobre o enredo e o cerque, com a frente de batalha aproximando-se a largos passos dos muros da vila), mas sobre a tenacidade sórdida dos pobres, sobre a hipocrisia de todas as intenções e a irrecuperabilidade do ideal burguês, representado nos pais que o visitam, cheios de boas intenções, inabaláveis nas grilhetas da moralidade antiga face a todas as provas do descalabro social. “Da forma como me encontrava teria apreciado, no que toca a dar o badagaio, ter a passar no fundo uma música mais minha, mais viva. O mais cruel desta nojice toda é que não gostava nadinha da música das frases do meu pai. Mesmo morto, acho que me teria levantado do túmulo para vomitar em cima das frases dele. É algo que não muda. No urro final junto com as entranhas, as babas e as torturas, só o que se pode fazer é abrir mais a goela e esgotar qualquer poesia que sobre. O que é preciso ser é muito brusco ou muito rico.”  
Este romance é, como outros passos da obra de Céline, uma viagem à mortal seriedade dos pequenos esquemas, dos ajustes de contas, da violência, da vontade sexual. Mas não é só pelo tema que Céline permanece Céline e Guerra consegue uma espécie de ressurreição (pesem embora os parágrafos truncados, os capítulos incompletos e as palavras que não se conseguem decifrar). É pelo estilo, pela insidiosa, viciante harmonia entre o calão da rua e o francês das letras, entre o insulto desbragado, o escarro, e os momentos em que, com instrumentos ferrugentos, se desenterra a ponta de um sentimento, o vestígio de um lamento ou o reflexo de um desamparo. O que nos devolve Céline em Guerra, obra imperfeita e inacabada, é a permanência de um eco de fundo imparável, dessa petite musique a que o autor se referiu várias vezes como troféu justo do seu trabalho, a toada infinita, o estribilho prolongável da grande prosa. “Até só para pensar um bocadinho tinha de recomeçar várias vezes, como quando se fala no cais de uma estação e passa um comboio. Fragmentos de pensamentos intensos uns atrás dos outros. Garanto-vos que é um exercício cansativo. Agora já estou treinado. Em vinte anos, aprende-se. Tenho a alma mais dura, como um bíceps. Já não acredito em facilidades. Aprendi a fazer música, a dormir, a perdoar e, como vêem, a fazer bela literatura também, com pedaços de horror arrancados ao ruído para sempre ".

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