Joaquim Castro Caldas. O firmamento clandestino dos poetas menores

Texto originalmente publicado na revista Ler, no Inverno de 2024


É nas margens do cânone onde encontramos uma forma de dinamismo poético que se mostra mais actuante na hora de subverter as expectativas do público, que tantas vezes se refugia e pacifica nos valores consagrados.


Sendo certo que está tudo começado, e a tarefa não deve ser outra senão a de continuar, o mais importante é fazê-lo sem abrir mão da febre, daquilo que para reflectir o seu fulgor sobre a vida lavra destrutivamente cá dentro; essa relação perdulária, efabuladora, expansiva, os vícios, todo o gozo, esse modo de se lançar com os dados, com cada jogada ir inteiro, apostar no que está para além da nossa própria vida. E se todos esganam flores, raspando-as na pele para se perfumarem, se enaltecem os discursos vagos, que não ameaçam nada nem roçam as saliências e os elementos concretos, se em nome dessa enfatuação avacalhada chegamos a um ponto em que “os poemas são peidos/ a citar arrotos velhos”, e depois esses mesmos que não deixam de roer o osso desta terra “querem que os putos comam/ a carne seca dos navios?”, parece essencial resgatar um compromisso mais sério com o perigo, uma forma de fazer arte que realmente perturbe os estados gerais, os usos redundantes e que apenas degradam tudo, desde a linguagem à vida sexual.

A reprodução exerce-se como um castigo sujeita a um esquema de repetição que se aperfeiçoa punindo todos os desvios. Como notava Borges algures, “o presente, digamos de passagem, talvez não seja menos cruel do que o passado, ou do que os diferentes passados, mas tais crueldades são clandestinas. (…) A crueldade, nos nossos dias, procura a sombra; a crueldade é obscena, no sentido etimológico do termo.” Também assim, e por mais liberdades ou formas de abandalhamento formal ou sintáctico que se reivindiquem, ao contrário do que se julga, a poesia é cada vez mais uma mistela que cada geração subsequente vai requentando, perdendo-se de vista como a principal obrigação do poeta é estar afinado pela tradição, ainda que seja para se lançar contra ela, “escorchá-la viva”. É preciso uma intimidade esplendorosa com o inimigo, se este for realmente um alvo tenebroso, para ter alguma hipótese de lhe assestar um golpe que o faça tremer.

Joaquim Castro Caldas, que se reconheceu como um desses capazes de atender ao decurso dessa segunda realidade, reconhece-se dizendo: “sou do tempo da memória”. Diz-nos que os poetas são esses que “morrem a ler a sua morte nos jornais”, esses “traficantes de ciúmes”, “ternos caloteiros do corpo dos outros/ ladrões de cheiros”, aqueles que ouvem as putas corresponderem-se com os deuses. E noutro momento assume a sua humildade, dizendo que foi “trolha nos vitrais da renascença”. Um ser que não se amofina pela desconsideração própria destes tempos face a esse desafio esplendoroso que passa por entretecer a partir das sombras um cerco que faça as luzes renderem-se. “O mais frequente é o mundo alarve que nos cerca, alimenta e devora, não nos dar muita importância e um dia vir buscar quando já não estivermos à espera”.

Em si mesma, a tradição é um território que só penetram verdadeiramente os espíritos que se foram ensaiando num confronto consigo mesmos, e que vão expandindo esse órgão gritante que de perto assusta e atemoriza, mas, nalguns casos, produz ao longe ecos que soam como uma canção imensamente cativante. E se não se pede aos homens que tenham condições de sensibilidade ou de inteligência estupendas, sendo suficiente que façam do encanto uma disciplina e uma razão, Castro Caldas sugere que “bastava para isso que os homens respeitassem a imaginação e deixassem que à sua volta circulassem as excepções à regra com seriedade”.

No mesmo texto, um dos tantos em prosa que fazem da sua obra reunida um mosaico desafiante, ainda que desigual no seu fôlego, adianta que “ser velho ou ser novo era indiferente no reino da metáfora e da arte. Não havia competição, apenas um exercício nu de simplicidade, embora uma perda voluntária de memória fosse letal”. E aqui, a esta parte final é preciso repeti-la para que alcance em nós a sua verdadeira repercussão: “embora uma perda voluntária de memória fosse letal”. Sem essa relação, perde-se o fio.

Nos países pequenos, e sobretudo destes que devem contender com uma história que cedo se revela um enredo angustiante, carregado de equívocos e lendas putrefactas que a todo o momento nos são lançadas em cima, há uma tendência para se elegerem e consagrarem aqueles poetas que exibam um grau de eloquência e de enlevo oracular, obras que obtêm um tal favor que, em vez de serem lidas como aberturas radicais, são integradas no regime dos códigos de processo, sejam de ordem civil ou penal. À sua volta, cresce essa fauna de exegetas com o espírito de moluscos e que não passam de agentes da condicional ou, nos piores casos, de guardas prisionais que cercam as obras de cuidados sufocantes, sendo que tudo o que resiste aos seus esforços exprime o reverso dessa moral que exibem, dessa jurisprudência mortificadora e alheada das visões que respiram e podem realmente comover-nos.

Joaquim Castro Caldas é um poeta menor, não propriamente negligenciável, mas um poeta que dificilmente poderia infiltrar o cânone por mais que se dedicassem à sua obra os melhores esforços desses astrónomos capazes de fixar de forma genérica o nosso firmamento literário. A reunião da sua obra poética num generoso volume de capa dura, sob o cativante título “Intérprete da Vontade do Pássaro”, não pode iludir-nos a este respeito. Ele mesmo se mostrou consciente de que “não fez nem faz outra coisa senão arte embrionária e terminal”. É curioso esse “cadastrum vitae” que nos fornecia a escassos meses da sua morte, no último dia de Agosto de 2008 – “entre centenas de aventuras, do luxo à valeta, vadio num longo percurso involuntariamente polémico de ida e volta fala-escrita ou vice-versa e documentando por registos corpo a corpo, terra a terra, sem objectivos de revelação concreta. Nada mais que esqueleto e artista, intérprete da vontade do pássaro, marginalizado irritante porque em paz, claridade, sequer interessado em dar-se por anarka, Outono 2007”.

Vamos lendo estas páginas sempre com algum gozo, mergulhando num lirismo decepado, apreciando exercícios que, mesmo se inspirados, nunca afastam um certo desleixo, por vezes mesmo sofríveis, mas ainda assim persiste aquela luz ínfima que dá a sensação de estar submetida a um esforço honesto, tendo a noite em cima quase a esmagá-la, e ela a resistir-lhe, e o poeta a fazer frente à “apatia de um mundo sonolento, onde só a poesia está acordada…” (Dovlatov). Castro Caldas mantém aquela atitude insolente dos escritores principiantes, nunca chega a graduar-se. O seu estilo não chega a convencer-nos inteiramente – é demasiado frágil –, e, no entanto, lembra essas fracas figuras que deixam o resto da rapaziada atónita trazendo alguma beldade pelo braço. Recolhemos muitos sinais de uma forte ética pessoal, é uma poesia cheia de um resíduo vital, e que não se serve de valores postiços para nos seduzir, mas se mantém a todo o momento fiel às suas disposições… No final de outro poema em prosa, lê-se: “Ou como diria o Almada Negreiros: ‘Ignorai os conselhos dos mais velhos para vosso bem e atirai-vos, independentes, para a sublime brutalidade da vida.”

Reconhecemos em Castro Caldas um desses habilidosos demónios com uma certa propensão solar, um coleccionador de curiosidades sonantes, vistosas, que tece a sua teia sem investir muito na música, mas que trabalha bem o ritmo, mantendo alguma tensão entre apontamentos cheios de verve satírica, versos concisos, alvejantes, sincopados, aquela desenvoltura de uma “oralidade que provém de um quotidiano reconquistado”. Não parece entreter aquele regime de falsa modéstia que muito facilmente se desmascara, e assim assume a posição de um projectista ocioso, passando o filme de um sonho de parcos versos, próprio de um “humilde poeta-de-dar-corda”. Tudo isto ajuda a criar uma proximidade e uma empatia que transcorrem da leitura. Tem aquela graça da escrita desinchada, a capacidade de desarme de um literato que se desinteressou da imortalidade, preferindo estabelecer essa irmandade com o mais comum dos mortais, e explorando aquele sentimento de inaptidão irremediável para a vida.

Espeta alguns pregos na língua, oferece epigramas toscos, escreve com esse desatavio de quem rasga, sem dar alguma vez a sensação de estar impressionado com o perfil titânico dos grandes. E, contudo, é preciso lê-lo com algum afinco, pois é justamente com este tipo de escritores que mais vezes temos a sensação de que algo de importante ficou amarrotado, esquecido. Joaquim Castro Caldas lembra-nos que existe uma literatura não-oficial, que não nos faz ouvir os guizos dos condecorados. Ele submerge-se nessa segunda realidade cultural, que mais tarde vem a ser a única. Se por vezes parece que andamos ali à cata de brilhos no meio do entulho, se há páginas que viramos e que nos deixam a sensação de serem bastante insossas, depois há também estremeções, surpresas que se tornam realmente compensadoras. Há suficientes imagens inusitadas para não deixar que o apetite que nos faz virar as páginas esmoreça: “há frutos profundos à superfície/ já despidos na base de uma árvore/ prontos a ser amados trago a trago/ lapidam à nossa fonte amor em bruto/ devolvem o diamante à pedra dentro/ sabem que vão podando à nossa frente/ a amizade como uma arte por instinto/ e há ainda uma terra por enquanto”.

É uma poesia que vai recolhendo achados sensíveis, e mesmo se tem dificuldade em manter um ímpeto e elevar a tensão a um nível exaltante, contém momentos bastante fortes e que são capazes de nos sugerir esses “olhos férteis e fartos/ devolvidos aos ossos/ aves rapazes leves/ rentes às mulheres/ olhos ágeis vorazes/ húmidos generosos/ ávidos e humildes”.

O pôr-se em causa, esses modos de desistir da sua posição e estatuto – “quero lá saber do eu” –, mesmo essa distância face a si mesmo, essa descrença na obra – “deixei de escrever/ ainda não escrevo” –, tudo isso sinaliza uma crise bastante produtiva, numa obra que vai trabalhando “o eco o musgo e o âmago”. Por outro lado, temos por vezes a sensação de que se trata de uma escrita que não se cumpre inteiramente, não alcança grandes cumes, fica aquém do que promete, mas vai-se implicando nesse esforço de forçar os limites, quase nos vira do avesso, e deve reconhecer-se como este “quase” é suficiente para desequilibrar quem respira e pressente essa força, encontrando nesta obra movimentos e levantamentos estranhos às suas necessidades de ar regulares, esse quadro que oferece um desvio face à vulgaridade do quotidiano, dando-nos um impulso. E a respiração ora acelera ora se acalma até praticamente desaparecer. Nuns momentos deixa-nos ávidos, noutros serenos, experimentamos essas variações que tanto nos excitam como no momento seguinte nos abandonam à indiferença.

Assim, vai ficando claro como resiste essa alegria negligente que é própria dos poetas menores, desses seres que se aliviaram da necessidade de prender um eco duradouro à sua passagem. E ao ler Joaquim Castro Caldas somos recordados de como, às vezes, um poeta faz mais por nós quando se rebaixa, exibe a lassidão de si mesmo, mostrando-se cansado de estar a sós, ao ponto de deixar que a sua voz se mescle com a da multidão. Acaba por falar como os demais, até que um abalo o faz seguir noutra direcção. Não é claro se o faz por cansaço ou por asco em relação a si mesmo, como dizia algures Bataille. Às vezes, a beleza é um modo de se defender dos seus instintos, da sua desolação. Há momentos em que tudo o que parece haver nele é veneno, mas para não degradar os outros, busca saídas. Por vezes, esse sinal de clemência que buscamos nuns versos, chega-nos não das páginas estarrecedoras, das grandes composições, mas de anotações ou fragmentos despretensiosos, desses poetas que avistamos ao longe, sem que aquilo que vão dizendo entredentes, enquanto seguem esbaforidos, soe com muita exactidão.

Há uns versos de Bataille que passam bem esta ideia, e que o aproximam de Castro Caldas: “Já não quero, gemo,/ já não consigo suportar/ a minha prisão./ Digo isto/ amargamente: palavras que me sufocam,/ deixai-me,/ soltai-me,/ tenho sede/ de outra coisa. (…) Odeio/ esta vida de instrumento,/ procuro uma fissura,/ a minha fissura,/ para ser quebrado./ Amo a chuva,/ o relâmpago,/ a lama,/ uma vasta extensão de água,/ o fundo da terra,/ mas não eu./ No fundo da terra,/ ó meu túmulo,/ livra-me de mim,/ já não quero sê-lo.”

A seu favor, Castro Caldas tem aquela paciência e cuidado de versos que, não sendo demasiado palavrosos, conseguem produzir relevos bastante insinuantes, sem nunca cair nas cantilenas caprichosas que procuram irradiar um lirismo saturado de um relambório mistificador. Há uma vulnerabilidade que não adere à trapaça, nem embarca em devaneios hínicos, mas consegue traçar um percurso em que podemos pressentir aquela sobriedade do que foi sujeito a ser dito em voz alta para que se denunciassem essas frases brilhantes que são paridas na penumbra e se tornam insuportáveis proferidas à luz do dia. No seu melhor, este poeta expõe nos seus versos aquele fulgor do que “só se dá pela carícia de passagem”, e fica claro como isto é em si mesmo a antologia de uma rede tantas vezes deixada a pernoitar no leito desses cursos de água mais agitados, e o magro tesouro destes versos é ainda mais precioso por ser colhido entre as inumeráveis transmigrações que esta alma sofreu, buscando aquela cumplicidade que se tece entre os demónios e os anjos mais afoitos nos momentos em que Deus não está a olhar.

Sirvam de exemplo estes versos que nos põem diante desse labirinto da composição dos seres: “há arrancares-te ao ar como uma ave/ desintegrares-te na terra árvore/ cresces da pedra húmido como um bicho/ flor à força e flecha de fogo/ jogas ao sol nu e em voo/ e ultrapassas o desejo como um fauno (…)”. Na página logo a seguir, ainda estamos dominados pelo mesmo movimento: “e pelo reflexo da lua nas águas/ vais à linha do infinito e vens/ corpo navegável só de um fôlego/ mesmo no sítio onde o sol se pôs/ gritas e ouves um rouco eco/ desse meu coração vivo na tua voz”.

Nestes momentos surpreende-nos a desenvolta plasticidade com que Castro Caldas enreda o idioma, produzindo dobras em que a poesia deixa um rastro de serpente, e aquela sumptuosa confusão entre reflexo e miragem que nos prende o olhar numa pele de escamas. Ao mesmo tempo, a sensação de que as páginas dos seus livros, em vez de marcarem divisórias estanques, criam movimentos e se dispõem a ecoar em efeitos de recombinação segundo a disposição do leitor, isso liberta-o para colher os versos como frutos e mordê-los “à hora a que os sinos/ se avisam uns aos outros/ para não soarem simultâneos”.

Sem referências impositivas, sem os constrangimentos biográficos que reduzem tanta da poesia contemporânea a pequenos dramas entre cortesãs, nestes versos damos menos por essas tão retocadas figuras que procuram ilustrar a angústia epocal e mais pelos “vadios que nos tecem/ companhia no desespero” (…) “num país perdido, algures pelo mundo”, onde apesar de tudo os homens ainda conseguem ser seres educados pelos seus instintos, levados “a cheirar aos poucos o pólen de uma rapariga primaveril”.

Por aqui, “há o costume a honra o resto e o sangue/ entre cantiga de amigo e ode ao amor”, uns tantos parêntesis vitais, como esse em que a cama é vista como uma maré baixa, ou quando o desejo de um corpo nos arrasta “como crianças a contar estrelas/ à porta das discotecas falidas”. O poeta é aquele que segura as pontas de um imenso território que tende a tornar-se invisível para a maioria. Ele próprio quase desaparece, mas vai murmurando para si mesmo: “ao ouvido hás-de ser alguém”.

Convém fazer alguma coisa da poesia, aproveitar-se da sua clareza, especialmente em períodos tão críticos como este, de forma a poder lembrar-se que “se a humanidade não conseguir a grande revolução, a natureza a fará como um animal que só ataca para se defender em nome do amor aos seus e na luta pela sobrevivência da espécie”. O poeta é aquele ser de quem, quando abre a boca para acrescentar alguma coisa, se exige uma coerência perturbadora. Como nos diz num certo passo Deleuze, “quanto àquilo que é realmente dito, a sua raridade de facto decorre de uma frase negar outras, impedir outras, contradizer ou recalcar outras frases; de modo que cada frase é também prenhe de tudo aquilo que não diz, de um conteúdo virtual ou latente que lhe multiplica o sentido e que se oferece à interpretação, formando um ‘discurso oculto’, verdadeira riqueza de direito”.

Ao mesmo tempo, isto também livra a poesia dessa desgraça de supor que há por aí um golpe que produzirá por fim uma variação decisiva, e que fará com que esses consumidores de patranhas se virem de súbito para ela, dando pela diferença, reconhecendo o tanto que depende da sua engrenagem subtilíssima, que em si mesmo é uma escola do impossível. Afinal, trata-se de um idioma falado pelos que se obstinam na sua atenção às coisas, mexendo com o mecanismo transfigurador, calibrando ritmos, dispensando o espectáculo, o espavento dos grandes enredos aglutinadores. É uma operação que não precisa de mais que umas poucas palavras, um modo de afinação, e que também não se desunha para andar atrás desses muitos, dos que “dão passeios à literatura/ espreitam a poesia”, arrancam-lhe sinais com que se enfeitam como se faz com as flores, sem considerar essa exuberância genital de seres que atendem a um outro ritmo e sedução.

Como frisa Castro Caldas, “quem não lê não leu nem vai ler nunca/ por isso o que for seja livre e não disperso/ mantenha-se arejado e limpo/ tente fruir um estilo próprio/ e sóbrio que agarre/ nos leve ao imprevisto nunca negligente/ sem jogo nem labirinto”. E ainda atira esta que, com o passar do tempo, se vai tornando uma noção que tem provado ser fronteiriça: “haver benevolentes nesta área é um milagre/ tal o esforço infectado pelo dinheiro”.

Como um desses nossos mestres vivos mais desatendidos vem sublinhando, “tem bem pouco valor tudo aquilo que tem preço”. Deste imperativo categórico se extrai – naturalmente, fatalmente – que a poesia nunca produz um valor que possa ser apreciado por aqueles que se habituaram a estabelecer diferenças de acordo com a mais vulgar das ordens de valor. Como vinca Bataille, “na medida em que a literatura está do lado do desperdício (de sentido), da ausência (de fins definidos), da paixão (inútil), ela posiciona-se nos antípodas de toda a actividade efectiva e do seu credo filosófico: o progresso na história. Desprezando qualquer compromisso com o mundo da praxis, por outro lado, a literatura põe em risco o primeiro dos fins da sociedade: a preservação da vida (e, neste sentido, a literatura é um crime).  Selvagem, inorgânica, escandalosa, a literatura opõe-se à razão fundada no cálculo do interesse, própria da vida gregária: a soberania dos movimentos impulsivos do desejo a que está associada ameaça a ordem racional da sociedade adulta (ignora todos os limites, pode dizer tudo, nada – portanto – encontra apoio nela)”.

Este livro publicado com o selo da editora Exclamação, e organizada por Isaque Ferreira, devolve-nos ao convívio com uma figura que terá tido mais gente com quem protelar o fim dessas noites à beira de outra manhã cheia do seu civismo apavorante, seres que se serviam desse “cantil de água da lua” que Castro Caldas levaria ao pescoço, reconhecendo a importância da partilha, da leitura dos livros mais acarinhados e logo atirados “para um canto como uma sebenta, um rosário de mágoas a passar pelos dedos”. Ele parecia saber que “a noite era apenas um truque para passar de um mistério a outro sem deixar rastro”. Agora faltam homens, as aventuras estão por aí incapazes de convencer um número suficiente de modo a terem as suas tripulações.

Mesmo a poesia, apesar do barulho à sua volta, é falada por muito poucos, como uma língua de tal modo ofensiva que caiu em desuso. As mãos que aparecem assinando o lixo que mais se vende, fogem da escrita, estando industriadas no sentido de produzir apenas o lixo que atulha já as consciências. E, assim, não sendo esta uma poesia de todos os tempos, está à altura dos desafios desta época… “escrevo à mão a quem se debruça ainda nas líricas impressas como as árvores curvadas sobre os lagos de água da chuva, marcando o livro com indisciplina, a quem ainda cheira a tinta, raízes e barro, a quem usa o romantismo para aliviar o tremor aos homens, a quem dorme nos azulejos de um jardim perdido a meio de uma cidade atómica, a quem ainda consegue respirar sem máscara de uma civilização para a outra, a quem não ajuíza os outros fora de tempo e não os julga antes do tempo, a quem vive o seu tempo antes e depois do seu tempo, a quem deixa aos outros o seu tempo sem rancor ao tempo, a quem mantém uma esperança, mesmo ingénua, ainda em vida a fundo, os braços o afago a um animal estimado, os olhos um punhal por uma tela adentro, o esqueleto uma escultura, a quem luta por, não vai à guerra contra, a quem só, corre por uma rua cheia, e pleno, corre por uma rua só”.

Esta não é uma poesia para aqueles que estão devotados aos esforços grandiosos da iluminação. Essa rede imensa que espera reabilitar o futuro, as esperanças dos homens. É antes dirigida àquele que, estando vivo, se sente por um fio, está a meio de uma semana frágil, devastada por acidentes, eivada de atoleiros. Como vinca Michaux: “Visamos os esgotados, os doentes, aqueles que quando a noite chega fogem de si próprios pelo cansaço dos seus corpos que abandonam de certa maneira.” Aí está a relação com o que é possível sustentar, e que não se confunde com esses buracos agitados onde se reúnem jovens autores progressistas trocando ansiosas notas sobre uma forma de idealismo que azeda tão depressa e cedo reforça o regime do cinismo.

Não há cinismo nestas páginas, ainda que possa aflorar tantas vezes uma desistência radiante: “a cereja incha putrefacta e fossiliza/ as flores murcham durante/ o chá cai mal na fraqueza do bule/ acabamos a lamentar a euforia numa auto-estrada/ em sentido contrário ao sonho e à felicidade/ com uma freira obscena a limpar-nos a consciência/ e visitar o paraíso perde todo o glamour/ mordiscar o tempo sabe a esferovite”.

Desaparecido há 16 anos, Castro Caldas deixou 11 volumes, dos quais a maior parte seria difícil resgatar nessas águas bastante lamacentas do negócio alfarrabista que, nos nossos dias, convergem para o regime de abate e dissipação dos leilões nas redes sociais. Assim, este volume permite que alguns leitores descubram enfim uma poesia que foi aparecendo em edições quase clandestinas, e que regressam agora para servir de testemunho de um espírito em tudo estranho à actual condição da poesia que vive em prisão domiciliar. Muitos destes poemas eram escritos para mais logo serem lidos numa cave com poucos metros, pretendiam revirar os ânimos no convés daquela embarcação que se desenraizava e partia à aventura.

O Pinguim está longe de ter cunhado algum desses nossos folclóricos mitos que vão engordando e assumindo prestígio à boleia de saudosismos exaltados. E, no entanto, parece ter medrado qualquer coisa afim desse espírito que Bataille reconhece à verdadeira literatura e o qual, “quer o escritor o queira quer não, está sempre do lado do desperdício, da ausência de um objectivo definido, da paixão que corrói sem outro fim que não seja esse, o de corroer-se. E se a sociedade tem como exclusiva orientação o sentido da utilidade, a literatura, a menos que por indulgência seja encarada como uma distracção menor, coloca-se sempre em oposição a esse sentido”.

Hoje, com a excepção de duas ou três livrarias menos ansiosas em impingir a livralhada – que depois se acumula sem ter olhos ágeis vorazes por onde arder, ficando-se por um peso morto, como abortos complicados enfiados em frascos e remirando-se nalgum quarto – quase todo o comércio dos livros é feito em superfícies planas, em regime de centro comercial. Apesar dessas excepções dolorosas, que ainda tornam mais evidente a falta de critérios e a indiferença das gerações mais novas, não há como um miúdo ir inscrever-se nalgum desses míticos baleeiros. Todos passam pela adolescência e pela juventude a correr, saindo incólumes. A poesia foi quase inteiramente ocupada por uma agência publicitária para egos mais ansiosos que se despenham em zonas menos transitadas do idioma. Mas aquele desejo de se fazer baptizar no mar alto, entre maus hábitos e piores companhias, tudo isso cedeu.

Não há como um tipo ir pelos versos e ver-se metido numa deriva que não vá no sentido da promoção de si mesmo, não há portos para derivas abissais, entre essa trupe de enjeitados, excluídos, loucos, miseráveis, mas também espíritos indómitos, fervorosos, fabulosamente deslocados face ao género de arrivistas que apenas se algarismam e triunfam lá fora. Estamos necessitados de caves escavadas à unha, por seres que se afinem uns aos outros, exercendo uma crítica feroz e sem complacências, aprofundando uma cratera esplendorosa nesse convívio em liberdade plena. Também por isto esta reunião poética nos merece algum estudo, no esforço de se perceber que vestígios nos deixou alguém que sem pejo instigava os demais nestes termos: “com poemas ou bombas/ fucem apanhem boleias/ entre cometas e estradas”… Um poeta que não se quis impor como uma figura tutelar, nem procurou fazer escola, ditar modas ou alguma etiqueta, mas tão-só aproveitar o balanço, ir suplementando o seu cadastro, vendo rotas alternativas, festas dessas capazes de pôr os antigos deuses de molho, enquanto aquela tripulação aproveitava o vigor oceânico do idioma para partir fosse como fosse, largar amarras ou incendiar a noite, acrescentar um verso, quem sabe só uma vírgula ou um til, um tique de sal na panela desde sempre ao lume da tradição.

 

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